IX — LEIBNIZ: FÍSICA E FILOSOFIA
Daniel Garber
Compreender o mundo físico era um dos interesses centrais de Leibniz. Os capítulos anteriores deste Companion, exploraram aspectos da metafísica de Leibniz, como seu entendimento sobre a substância em geral e a substância corpórea em particular. No entanto, o interesse de Leibniz pelo mundo físico ultrapassava a Metafísica. Seus escritos incluem inúmeras cartas, notas, ensaios e tratados mais extensos sobre questões físicas, que mostram seu profundo envolvimento com a ciência de sua época. Leibniz foi um dos físicos mais importantes do final do século XVII; além de Sir Isaac Newton, provavelmente não houve outro físico de sua geração que tenha contribuído mais para a nova Física matemática. Portanto, para entender a história da ciência nesse período crucial, precisamos compreender as ideias de Leibniz sobre a Física. Para Leibniz, assim como para muitos de seus contemporâneos, não havia uma fronteira clara entre Física e Filosofia; o objetivo era compreender o mundo, e muitas vezes aqueles envolvidos em projetos filosóficos para entender o mundo também estavam profundamente envolvidos em projetos científicos. Descartes, por exemplo, o grande filósofo do início do século XVII, fez importantes contribuições para a Matemática e a Física em seus escritos, assim como Bacon, Hobbes, Gassendi e, mais tarde, Berkeley. A Física de Leibniz e sua filosofia estavam profundamente interligadas; tentar estudar uma sem a outra resulta em uma visão parcial e inadequada de seu pensamento.
Neste ensaio, delinearei os fundamentos e as principais características das ideias de Leibniz sobre a Física. Após discutir os desenvolvimentos do final do século XVII e o desenvolvimento histórico do pensamento de Leibniz, abordarei sua ciência da dinâmica e a noção deliberadamente metafísica de força; central para essa ciência. Em seguida, voltarei à Física propriamente dita e discutirei a concepção de Leibniz sobre espaço, movimento e as leis do movimento, concluindo com uma discussão sobre as relações entre o domínio da física e outros domínios de interesse de Leibniz[1].
1. ARISTOTELISMO, MECANICISMO E A FÍSICA INICIAL DE LEIBNIZ
O século XVII foi um período de rápido desenvolvimento nas ciências, no qual a ciência aristotélica, que dominava as escolas da Idade Média e do Renascimento, foi substituída pelo que logo se tornaria a Física Clássica. No início do século, todos os estudantes aprendiam Física com Aristóteles; cem anos mais tarde, Newton era o novo mestre.
A Física aristotélica era bastante complexa, mas para entender a transformação intelectual da qual Leibniz participou, precisamos compreender seu ponto de partida. Para a Física aristotélica, os princípios explicativos básicos eram matéria e forma. Juntas, matéria e forma eram tomadas como componentes dos corpos. Matéria é o que permanece constante na mudança, enquanto a forma é o que muda quando um corpo muda suas propriedades; a forma acidental explica as mudanças acidentais (como do cabelo castanho para o amarelo, ou do quente para o frio), enquanto a forma substancial explica as mudanças na substância: como por exemplo, do ar para a água, ou do príncipe para sapo. Dessa forma, para o físico aristotélico, as propriedades características dos corpos, eram explicadas pelas formas e vistas como tendências inatas dos corpos para agir de certas maneiras; por exemplo, considerava-se que as pedras caíam, o ar subia, o fogo aquecia e a água esfriava, devido às formas que esses corpos possuíam[2].
Enquanto a filosofia natural aristotélica foi controversa desde sua primeira reintrodução na Europa Ocidental, no final do século XII e início do século XIII, no início do século XVII ela havia se tornado a ortodoxia nas escolas[3]. Contudo, logo no começo do século XVII, passou a ser alvo de um novo tipo de ataque por parte dos proponentes da nova filosofia mecanicista. Segundo essa nova filosofia, os únicos princípios explicativos na física eram tamanho, forma e movimento. Sustentava-se que as propriedades dos corpos deviam ser explicadas, não em termos de forma, acidental ou substancial, mas em termos das propriedades amplamente geométricas das diminutas partículas que compõem os corpos maiores, bem como do movimento de pequenos corpúsculos de diferentes tamanhos e formas, cujo movimento se alterava unicamente por meio de colisões. Assim, calor e frio não deveriam ser explicados em termos de forma, mas pela forma das partículas que compõem um corpo ou pela rapidez com que se movem; a gravidade não deveria ser explicada em termos de uma tendência inata a cair, mas pela colisão entre uma pedra em queda e as partículas da atmosfera que a impulsionam para baixo.
Esse novo mundo de bolas de bilhar foi obra de muitos ao longo daquele século, incluindo Galileu, Descartes, Hobbes, Huygens, Gassendi e outros. Para alguns, aquele estava vinculado às doutrinas dos antigos atomistas, com seus átomos indivisíveis que se moviam no vácuo; para outros, remetia à ideia de uma substância material infinitamente divisível imersa em um plenum. Para alguns, estava associado à formulação de leis matemáticas precisas, enquanto outros se contentavam com descrições mais gerais e menos rigorosas do comportamento dos corpos; para alguns, tinha um caráter experimental, enquanto para outros era predominantemente a priori. Havia também um profundo desacordo quanto ao quão nova essa nova filosofia mecanicista realmente era. Enquanto alguns de seus adeptos a representavam como verdadeiramente revolucionária, muitos, incluindo Leibniz em certos momentos de sua carreira, a concebiam como uma continuidade do pensamento aristotélico, consistente tanto com o aristotelismo medieval quanto com o que o próprio Aristóteles originalmente pretendia, por mais que seu pensamento tenha sido distorcido por pensadores posteriores[4].
É nesse contexto que devemos considerar o pensamento físico de Leibniz. Sua leitura e educação iniciais ocorreram, sem dúvida, dentro da tradição escolástica, e foi certamente a física aristotélica que ele primeiro aprendeu[5]. No entanto, quando tinha apenas quinze anos, se pudermos confiar em seu próprio testemunho, Leibniz voltou-se para os modernos[6]. Nada restou desse período mecanicista inicial, que teria começado em 1661. Contudo, já em meados e no final da década de 1660, há amplas evidências de seu interesse pela nova filosofia mecanicista[7]. O mais importante nesses primeiros anos são duas cartas escritas por Leibniz, em 1668 e 1669, para seu mentor Jacob Thomasius, nas quais ele discute os novos mecanicistas (A II.i n.º 9 e 11). Como muitos dos novos mecanicistas, Leibniz via a natureza do corpo como consistindo em suas propriedades amplamente geométricas, extensão e antitipia (impenetrabilidade) (ver A II.i 23: L 101). Como muitos mecanicistas, particularmente os cartesianos, Leibniz também parece ter flertado com o ocasionalismo nessa fase, afirmando a Thomasius que somente Deus tem a capacidade de mover os corpos, ao recriá-los continuamente em diferentes lugares e momentos (ver A II.i 23–4: L 101–102)[8]. Referindo-se a filósofos como Descartes, Bacon, Gassendi, Hobbes e Digby, Leibniz declara: “Mantenho a regra, comum a todos esses renovadores da filosofia, segundo a qual as propriedades corpóreas devem ser explicadas apenas por magnitude, figura e movimento.” (A II.i 15: L 94).
Embora Leibniz fosse claramente um adepto da nova filosofia mecanicista no final da década de 1660, não há razão para acreditar que ele considerasse sua forma de mecanicismo incompatível com a adesão à filosofia aristotélica. Com efeito, na carta de abril de 1669 a Thomasius, Leibniz enfatiza repetidamente que, embora a nova filosofia possa ser inconsistente com os ensinamentos dos escolásticos, ela é plenamente compatível com os ensinamentos do próprio Aristóteles; corretamente compreendido, argumenta Leibniz, Aristóteles também era, de certo modo, um mecanicista (A II.i n.º 11: L 93–103). Estudos recentes desses textos também sugerem que o conceito de substância de Leibniz nesses anos deve ser compreendido em termos aristotélicos, ou seja, em termos de matéria e forma. Como mencionado anteriormente, durante esse período, Leibniz sustentava que a essência do corpo era a extensão e a impenetrabilidade, como faziam muitos mecanicistas. No entanto, ao contrário dos mecanicistas comuns, Leibniz combinava essa visão com uma concepção aristotélica de substância, sustentando que os corpos apenas constituem substâncias quando considerados juntamente com mentes concomitantes, em particular, a mente de Deus, que é a fonte da atividade no mundo[9]. Em suma, parece mais adequado situar Leibniz não no contexto dos mecanicistas radicais, mas no dos renovadores ou reformadores, entre os pensadores do século XVII que se atraíam pela nova filosofia mecanicista, ao mesmo tempo em que acreditavam ser possível reconciliá-la com a antiga física aristotélica. Para Leibniz nesse período — e, como veremos, ao longo de toda a sua carreira como físico –, a concepção era de que a verdadeira física deveria, de algum modo, ser uma síntese entre o antigo e o novo, uma física que fosse ao mesmo tempo aristotélica e mecanicista[10].
Os primeiros indícios do interesse de Leibniz pela nova física mecanicista são programáticos e pouco sistemáticos. A primeira manifestação de um interesse sério e sistemático pela física por parte de Leibniz só aparece no final de 1669. A partir desse momento, inicia-se uma série de anotações sobre questões físicas, principalmente sobre a teoria do movimento, que culminavam nos primeiros escritos substanciais de Leibniz sobre o tema: a Hypothesis Physica Nova (HPN) ou Theoria Motus Concreti, apresentada à Royal Society de Londres em 1671, e a Theoria Motus Abstracti (TMA), apresentada à Academia Francesa de Ciências no mesmo ano[11].
Juntas, essas obras constituem um sistema físico no mínimo peculiar. Na Theoria Motus Abstracti (TMA), Leibniz apresenta uma explicação abstrata do movimento, como sugere o título, e uma explicação fundamentada puramente na razão, segundo ele próprio afirma. No entanto, tal explicação do movimento entra em contradição radical com a experiência cotidiana dos corpos e com os experimentos mais precisos de outros investigadores. A solução de Leibniz para essa aparente inconsistência entre a razão e o mundo é uma hipótese sobre o estado do universo criado por Deus, que, em conjunto com as leis abstratas, resulta em algo próximo daquilo que observamos no mundo. Essa é a tarefa da Hypothesis Physica Nova (HPN), ou teoria do movimento concreto; o que é indicado por seu subtítulo: uma teoria do movimento para o nosso mundo (A VI.ii 223)[12].
O cerne da teoria abstrata do movimento de Leibniz na Theoria Motus Abstracti (TMA) é uma explicação da colisão entre dois corpos; para Leibniz, assim como para outros mecanicistas, a colisão é a única maneira pela qual o movimento de um corpo pode ser alterado naturalmente. A explicação do impacto é formulada mediante a noção de conatus — uma parte indivisível e inextensa do movimento, ou o começo ou fim do movimento — como ele próprio define (A VI.ii 264–65: L 139–40)[13]. Leibniz constrói sua teoria abstrata do movimento com base na convicção de que os resultados das colisões são determinados simplesmente pela combinação dos movimentos instantâneos (conatus) de dois corpos no momento da colisão; o corpo, enquanto tal, não oferece resistência ao movimento, de modo que a massa ou o tamanho dos corpos envolvidos não desempenham qualquer papel no resultado da colisão.
Como Leibniz expressou na Hypothesis Physica nova (HPN): “toda potência nos corpos depende da velocidade” (A VI.ii 228). Se dois corpos com velocidades desiguais colidem, Leibniz argumenta que ambos se moverão juntos após a colisão com uma velocidade igual à diferença entre as duas velocidades originais, e na direção do corpo mais rápido. Em particular, se um corpo em movimento A atinge um corpo B em repouso, então ambos se deslocam na direção de A, independentemente do tamanho de A e de quão grande B possa ser; nesse caso, B não oferece qualquer resistência ao ser colocado em movimento. Quando as duas velocidades são iguais, então “as direções de ambos serão corrompidas, e uma terceira será escolhida, intermediária entre as duas, conservando-se a velocidade do conatus”, uma conclusão que Leibniz considera ser “o ápice da racionalidade no movimento”. Ele justifica essa conclusão apelando ao princípio de que “nada ocorre sem razão”. Muito provavelmente, este foi o primeiro registro impresso em que Leibniz recorreu a esse que se tornaria um dos mais fecundos de seus princípios[14]. Contudo, um caso especial ocorre quando dois corpos com a mesma velocidade colidem diretamente; nesse caso, ambos chegam a um estado de repouso, em contradição com o princípio cartesiano da conservação, segundo o qual a quantidade total de movimento (produto do tamanho pelo valor da velocidade) se conserva tanto no mundo em geral quanto em cada colisão individual[15].
Essas leis do movimento, por mais razoáveis que possam parecer em abstrato, correspondem muito mal ao mundo que observamos ao nosso redor, como Leibniz bem sabia; em particular, os corpos em nosso mundo parecem, com efeito, oferecer resistência ao serem postos em movimento. Na Hypothesis Physica Nova (HPN), essas leis abstratas são reconciliadas com a experiência por meio de uma hipótese sobre a constituição do mundo. Como sugerem seus escritos anteriores, o espírito por trás da HPN é inteiramente mecanicista. Leibniz escreve:
“Concordo plenamente com os seguidores daqueles excelentes senhores, Descartes e Gassendi, e com todos os que ensinam que, em última instância, toda variedade nos corpos deve ser explicada em termos de tamanho, forma e movimento.” (HPN, sec. 57; A VI.ii 248; cf. A VI.ii 249–50)
O procedimento de Leibniz na Hypothesis Physica Nova (HPN) lembra muito a história da criação que Descartes havia narrado alguns anos antes[16]. A estratégia de Descartes consistia em derivar o estado presente do mundo a partir de uma criação inicial e das leis do movimento. Leibniz, da mesma forma, parte de um estado inicial assumido, composto por um globo solar e um globo terrestre (ele ignora os demais corpos planetários, grandes e pequenos), que são postos em movimento de diversas formas, resultando na rotação de cada um em torno de seu próprio eixo e na revolução de ambos ao redor um do outro, com a luz fluindo do Sol para a Terra (HPN, secs. 1–10; A VI.ii 223–36). Leibniz argumenta que o impacto da luz contra a superfície da Terra resulta na produção de pequenas esferas de matéria. Esse é um passo crucial em sua teoria, pois, segundo ele,
“essas … esferas são as sementes das coisas, … o fundamento dos corpos e a base de toda a variedade que admiramos nas coisas, bem como de todo o ímpeto que encontramos nos movimentos.”
(HPN, sec. 12; A VI.ii 226).
O projeto, então, consiste em explicar os principais fenômenos do mundo em termos dessas pequenas esferas ou corpúsculos. Leibniz discute, por exemplo, os quatro elementos aristotélicos (terra, água, ar e fogo), demonstrando como cada um pode ser gerado a partir de sua teoria (HPN, secs. 13–14); a gravidade (HPN, secs. 15 e seguintes); a cor, o som e o calor (HPN, secs. 30 e seguintes); o magnetismo (HPN, secs. 33bis e seguintes); as reações químicas (HPN, secs. 37 e seguintes); a densidade e a raridade (HPN, sec. 56); entre outros fenômenos.
O que mais nos interessa neste contexto é a maneira exata pela qual as leis abstratas do movimento, relativas à colisão dos corpos, são afetadas pela nova hipótese apresentada na Hypothesis Physica Nova (HPN). De acordo com a teoria abstrata da Theoria Motus Abstracti (TMA), o tamanho ou a massa não podem desempenhar qualquer papel na determinação do resultado de uma colisão. Ademais, como no momento do impacto os dois corpos envolvidos terão exatamente o mesmo conatus, eles sempre se moverão na mesma direção e com a mesma velocidade. No entanto, a experiência mostra que os corpos no mundo real não se comportam dessa maneira; em todas as circunstâncias, o tamanho ou a massa de um corpo exercem um papel, e, na maioria dos casos, os corpos tendem a se repelir após a colisão.
Leibniz formula sua hipótese de modo que, no mundo descrito pela HPN, os corpos que agem de acordo com as leis do movimento expostas na TMA se comportem da mesma forma que observamos no mundo real. No universo da HPN, os corpos da experiência ordinária são compostos por uma infinidade de minúsculos corpúsculos.
Agora, imagine uma fileira horizontal de n pequenas esferas discretas, todas designadas como A₁, A₂, A₃…, colidindo com uma única esfera B, que se move na direção oposta. Suponhamos, além disso, que B se mova mais rapidamente do que as esferas da fileira A. Considere, por exemplo, a primeira esfera, A₁, colidindo com B. De acordo com as leis da Theoria Motus Abstracti (TMA), a velocidade de B após a colisão será igual à sua velocidade anterior menos a velocidade de A₁, e ambas as esferas se moverão na mesma direção e com a mesma velocidade após a colisão, ou seja, na direção em que B originalmente se movia. O par de esferas, A₁ e B, então colidirá com A₂, e o mesmo processo ocorrerá: a velocidade de B será ainda mais reduzida. Dessa forma, a velocidade de B será progressivamente reduzida a cada colisão; se houver um número suficiente de esferas na sequência, a velocidade de B pode até mesmo ser invertida.
Assim, em um corpo descontínuo, o tamanho (ou, pelo menos, o número de partículas na linha de colisão direta) pode desempenhar um papel no resultado da colisão[17]. Da mesma forma, Leibniz pode recorrer à sua hipótese física (neste caso, à descontinuidade dos corpos, juntamente com o éter que flui ao redor de suas partes) para introduzir a elasticidade no mundo, possibilitando, assim, que os corpos ocasionalmente se repilam após a colisão[18]. Ele escreve na HPN:
“Mas, por meio da maravilhosa obra do Criador, ou por seu dom necessário à vida, segundo nossa hipótese, todos os corpos sensíveis são elásticos, devido à circulação do éter, e, portanto, todos os corpos sensíveis refletem ou refratam… Tudo é descontínuo; daí decorre que, ceteris paribus, a massa maior exerce um efeito maior; com efeito, tudo é elástico; ou seja, quando comprimido e deixado a si mesmo, logo retorna ao seu estado anterior por conta do éter circulante.” (HPN, sec. 22; A VI.ii 229–230)
De fato, Leibniz acreditava que, em conjunto, suas leis abstratas e sua hipótese física resultavam nas leis do impacto de Huygens e Wren, recentemente descobertas e amplamente discutidas. Escrevendo em 13/23 de julho de 1670 a Henry Oldenburg, secretário da Royal Society — que havia publicado as leis de Huygens e Wren e à qual a Hypothesis Physica Nova havia sido dedicada –, Leibniz observou:
Por conseguinte, estabeleci certos elementos das verdadeiras leis do movimento, mediante o método geométrico e a partir das definições dos termos… e isso mostrou que aquelas regras do movimento, que o incomparável Huygens e Wren estabeleceram, por mais fecundas e admiráveis que possam ser, não são primárias, nem absolutas, nem claras, mas, assim como a gravidade, derivam de certo estado do globo terra-aquoso, não demonstrável por axioma ou teorema, mas sim pela experiência, pelos fenômenos e pela observação…
(A II.i 59. Ver também HPN, sec. 23; A VI.ii 231–232)[19].
Assim, as leis que os corpos parecem obedecer em nosso mundo são o resultado de leis abstratas e geométricas, muito diferentes daquelas que experimentamos no dia a dia, operando em um mundo complexo que Deus criou para seus próprios fins .A Theoria Motus Abstracti (TMA) e a Hypothesis Physica Nova (HPN) são de grande importância por serem os primeiros tratados sistemáticos de física compostos por Leibniz. No entanto, esses escritos também revelam uma mudança metafísica significativa em relação a apenas alguns anos antes. Na carta a Thomasius de 1669, a natureza do corpo era definida como extensão e impenetrabilidade, mas, na época de publicação da TMA, o pensamento de Leibniz havia se modificado. Em uma carta a Arnauld, de novembro de 1671, na qual anunciava suas novas publicações, Leibniz declara que a essência do corpo não consiste na extensão, nem na extensão e impenetrabilidade, mas no movimento (A II.i 172: L 149).
Além disso, com a TMA e a HPN, Leibniz parece abandonar o ocasionalismo presente em seus escritos anteriores. Como mencionado anteriormente, nas cartas a Thomasius de 1668 e 1669, Leibniz sustentava que Deus era a única fonte real de atividade no mundo e a verdadeira causa do movimento no mundo físico. Contudo, nesses novos escritos, esse ocasionalismo é rejeitado, e a causa do movimento passa de Deus para os próprios corpos; os corpos parecem ser as fontes de seu próprio movimento, que deriva de suas próprias mentes; e, essas mentes, juntamente com seus corpos, constituem substâncias genuínas[20]. A rejeição do ocasionalismo, juntamente com a atribuição inequívoca de atividade às substâncias no próprio mundo, será central no pensamento maduro de Leibniz sobre o mundo físico.
Os escritos de Leibniz demonstram um interesse contínuo por questões de física ao longo da década de 1670, tanto durante quanto após sua importante visita a Paris em 1672[21]. Embora seu horizonte intelectual estivesse se expandindo rapidamente, suas ideias físicas permaneceram constantes por alguns anos. Em um longo manuscrito de 1672, intitulado Propositiones Quaedam Physicae (A VI.iii 4–72), encontra-se uma tentativa de apresentar a teoria fundamental da HPN de maneira sistemática e geométrica, algo que Leibniz repetirá em uma importante carta a Honoratus Fabri no final de 1676 (A II.i 286–301).
O Leibniz de 1671 também pode ser reconhecido em um conjunto fascinante de notas que ele escreveu sobre os Princípios da Filosofia de Descartes, no final de 1675 ou início de 1676 (ver A VI.iii 213–217)[22]. Nessas notas, ele nega a lei cartesiana da conservação e substitui-a por sua própria concepção, segundo a qual é o conatus que se conserva — uma ideia já presente em seus escritos de 1671. Da mesma forma, contra Descartes, ele nega que os corpos, por si mesmos, tenham qualquer tendência a permanecer no estado em que estão ou a resistir à aquisição de um novo movimento, reafirmando talvez a mais audaciosa das teses formuladas na HPN e na TMA, de que as leis da colisão são independentes do tamanho ou da massa dos corpos (A VI.ii 215–216). Como observou Yvon Belaval, “foi, acima de tudo, o autor da Hypothesis Physica Nova quem escreveu essas primeiras reflexões sobre os Princípios[23].”
A partir de 1676, Leibniz parece ter empreendido uma reconsideração profunda de suas concepções sobre os fundamentos da física. A física de 1671 não reconhecia qualquer resistência inerente nos corpos; o tamanho ou a massa não desempenhavam qualquer papel na determinação do resultado de uma colisão entre dois corpos. É evidente que, em seu nível mais fundamental, a lei cartesiana da conservação da quantidade de movimento — produto do tamanho pela rapidez — deveria ser violada. No entanto, embora Leibniz não considerasse o princípio cartesiano da conservação como uma lei fundamental, ele argumenta, em um escrito de dezembro de 1675, que, neste mundo (isto é, no mundo descrito pela HPN), repleto de matéria, esse princípio é satisfeito (A VI.iii 466 e seguintes)[24].
Há indícios de que Leibniz encontrou uma falha fatal na lei fundamental de Descartes menos de um ano depois. Em uma referência bastante evidente ao seu encontro com Spinoza no final de 1676, Leibniz relata ter corrigido Spinoza a respeito das leis cartesianas do movimento:
“Spinoza não percebeu os erros nas regras do movimento de Descartes; ficou surpreso quando comecei a lhe mostrar que elas violam a igualdade entre causa e efeito.” (A VI.iii 481)[25].
Para Leibniz, o princípio da igualdade entre causa e efeito estabelece que deve haver exatamente tanto no efeito quanto havia na causa, um princípio que, como veremos, desempenha um papel crucial em sua física madura[26]. Embora sua observação sobre o que mostrou a Spinoza possa parecer um tanto enigmática, escritos posteriores sugerem com bastante clareza o que Leibniz quase certamente quis dizer: as leis cartesianas da colisão, regidas pelo princípio da conservação da quantidade de movimento, são inconsistentes com o princípio de igualdade entre causa e efeito. Se a quantidade cartesiana de movimento fosse realmente conservada em uma colisão, então a capacidade de trabalho que os corpos tinham antes do impacto poderia simplesmente se perder após a colisão (ver, por exemplo, a carta a Theodor Craanen, junho de 1679, A II.i 469–471)[27].
Dessa forma, Leibniz sugere que o princípio cartesiano da conservação da quantidade de movimento estava errado. Em janeiro de 1678, Leibniz parece ter dado um passo além e substituído a lei cartesiana de conservação por uma própria. Era uma consequência das leis de impacto de Huygens que, em uma colisão, o produto da massa (tamanho) pelo quadrado da velocidade se mantém constante antes e depois do impacto. De fato, Leibniz já havia notado isso em suas anotações sobre Huygens a respeito das colisões no final de 1669, embora, na época, essa observação não parecesse ter causado nele grande impressão (ver A VI.ii 158). No entanto, em um manuscrito que pode ser datado precisamente de janeiro de 1678, Leibniz transforma essa observação de Huygens sobre os corpos em colisão, em um elemento central de seu pensamento[28]. Ele passa a sustentar, nesses anos, que na colisão entre os corpos, a força ou potência de ação deve ser conservada[29]. O que Leibniz descobre em janeiro de 1678 é que essa força ou potência de ação deve ser medida por mv².
Como Leibniz enfatizaria posteriormente, a substituição da física anterior da TMA e da HPN por uma nova física baseada na conservação de mv², estava impregnada de um profundo significado filosófico. Alguns anos depois, no Discurso de Metafísica (1686), Leibniz escreveu:
“Essa consideração, a distinção entre força e quantidade de movimento, é sumamente importante, não apenas na física e na mecânica, para encontrar as verdadeiras leis da natureza e as regras do movimento, … mas também na metafísica, para melhor compreender os seus princípios.” (Discurso de Metafísica, par. 18, G IV 444: AG 51).
Em particular, Leibniz argumenta que a compreensão do novo princípio de conservação nos levará a reconhecer que corpo e movimento devem ser fundamentados no que ele chama de força, algo distinto das noções de extensão e movimento que sustentam o mundo cartesiano [30](ibid.).
Mais adiante, examinaremos essa afirmação com mais cuidado. No entanto, vale destacar que nesses anos a nova lei de conservação não foi a única mudança significativa nas concepções de Leibniz. De maneira mais geral, o abandono da estratégia fundamental da física da HPN e da TMA, muito provavelmente nesse mesmo período, resultou em transformações fundamentais na maneira como Leibniz passou a conceber a física e seus princípios. Ele dá um relato dessa mudança no Specimen Dynamicum (SD), escrito alguns anos depois, em 1695. Ao caracterizar seu pensamento anterior no SD, Leibniz descreve a visão da HPN como aquela em que o corpo continha apenas “noções matemáticas, tamanho, forma, lugar e suas mudanças” e, como consequência, o resultado de uma colisão era determinado exclusivamente pela “composição geométrica do conatus”, o que levava à conclusão de que o menor corpo poderia mover o maior sem qualquer perda de velocidade.
Assim, Leibniz explica a seus leitores posteriores que ele havia sustentado que “o Sapientíssimo Autor das coisas evitou as consequências que decorrem per se das simples leis do movimento derivadas da geometria” por meio da organização das coisas no mundo, conforme a hipótese da HPN (SD, parte I, par. 11, GM VI 241: AG 124). Ele então prossegue:
“Mas, depois de examinar tudo isso mais profundamente, percebi em que consiste uma explicação sistemática das coisas e notei que minha hipótese anterior sobre a noção de corpo era imperfeita… Pois não podemos derivar todas as verdades concernentes às coisas corpóreas apenas de axiomas lógicos e geométricos…, e porque devemos recorrer a outros axiomas relativos à causa e efeito, ação e paixão, em termos dos quais podemos explicar a ordem das coisas; com efeito, é necessário admitir algo metafísico, algo perceptível apenas pela mente, além daquilo que é puramente matemático e sujeito à imaginação. Devemos acrescentar à massa material certo princípio superior e, por assim dizer, formal. Se chamamos esse princípio de forma, enteléquia ou força, pouco importa, contanto que nos lembremos de que ele só pode ser explicado por meio da noção de forças.” (SD, parte I, par. 11, GM VI 241: AG 124–25)[31].
As hipóteses físicas sobre diversos fenômenos continuarão a ser importantes para Leibniz, assim como eram para qualquer filósofo mecanicista ortodoxo do século XVII. No entanto, o que é fundamental aqui é que, ao final da década de 1670, grande parte do comportamento dos corpos, que Leibniz antes atribuía ao estado do mundo, passa a ser considerado como inerente aos próprios corpos. O tipo de princípio de conservação que, na física leibniziana dos anos 1670, aparecia no máximo como um princípio derivado, agora passa a ser entendido como fundamental à natureza do corpo — um ponto que desenvolveremos com mais detalhes adiante.
Leibniz apresenta essa transição como a passagem de uma concepção geométrica do corpo e de suas leis para uma concepção metafísica. No entanto, essa formulação não está completamente correta. Como vimos anteriormente, o princípio da razão suficiente já desempenhava um papel importante na física inicial da TMA e da HPN. Além disso, mesmo nessa física inicial, o corpo não era considerado algo “puramente matemático” ou composto apenas de “massa material”. No entanto, o que ocorre é que diversos princípios metafísicos, como a igualdade entre causa e efeito, agora passam a determinar as leis fundamentais da natureza de um modo que não faziam antes. Como consequência, Leibniz afirma que a natureza do corpo não pode ser reduzida à extensão ou ao movimento, mas deve ser compreendida em termos de força.
2. A FÍSICA MADURA: UMA VISÃO GERAL
As anotações e correspondências de Leibniz no final da década de 1670 e início da década de 1680 demonstram um interesse contínuo por questões relacionadas ao movimento, física e, de maneira mais ampla, filosofia natural[32]. No entanto, os fundamentos de sua nova física não foram revelados publicamente até 1686, quando Leibniz publicou seu breve, mas importante, Brevis Demonstratio Erroris Memorabilis Cartesii et Aliorum circa Legem Naturalem (BD) nos Acta Eruditorum[33].
Nessa obra, Leibniz apresentou publicamente, pela primeira vez, o que já vinha dizendo em particular a amigos e correspondentes há alguns anos: que a lei cartesiana da conservação da quantidade de movimento (produto do tamanho pela rapidez) é falsa e conduz a paradoxos. Examinaremos esse argumento com mais detalhes na seção 4.3.
Essa afirmação gerou uma enorme controvérsia entre os muitos que ainda seguiam Descartes ao defender o princípio da conservação da quantidade de movimento, uma disputa que se estendeu até a década de 1690[34]. Enquanto o Brevis Demonstratio (BD) enfatizava os erros da física cartesiana, ele apenas sugeria de maneira indireta o que Leibniz pretendia colocar em seu lugar. No entanto, logo após a publicação desse ensaio — talvez estimulado pelo aparecimento dos Principia Mathematica de Isaac Newton em 1687 — Leibniz começou a desenvolver os detalhes de seu próprio programa físico[35].
O mais importante, do ponto de vista dos fundamentos da nova ciência que Leibniz denominou dinâmica, é o extenso tratado Dynamica de Potentia et Legibus Naturae Corporeae, escrito durante sua viagem à Itália entre 1689 e 1690, com a intenção de publicação, embora tenha permanecido inédito durante sua vida[36]. Essa obra constitui um tratado sistemático sobre o movimento e suas leis, apresentando, de maneira rigorosa e organizada, as conclusões dessa nova ciência.
Embora Leibniz nunca tenha publicado a Dynamica, ele divulgou um ensaio que expõe o que considera serem os fundamentos da dinâmica. Esse ensaio, intitulado Specimen Dynamicum (SD), foi publicado nos Acta Eruditorum em 1695[37]. Embora o título sugira um resumo ou uma seleção da obra anterior, e as palavras iniciais de Leibniz indiquem que o novo trabalho apresentaria um vislumbre do conteúdo da Dynamica, pouco do material altamente técnico da Dynamica se encontra no SD. Em vez disso, o que temos é uma exposição cuidadosa dos fundamentos metafísicos da nova ciência — algo difícil de encontrar na antiga Dynamica, mas não menos valioso do que a física mais técnica ali desenvolvida.
Também importante entre os escritos desse período é o Tentamen de Motuum Coelestium Causis, publicado nos Acta Eruditorum em 1689. Nesse ensaio, Leibniz apresenta uma explicação para o movimento dos planetas, utilizando um complexo esquema de vórtices — uma alternativa mais explicitamente mecanicista à explicação baseada na teoria da gravitação universal que Newton havia apresentado nos Principia[38].
Embora Newton não negasse que pudesse haver uma explicação mecanicista subjacente à força da gravidade que ele havia descoberto e ao movimento dos planetas que resultava dessa força segundo sua teoria, os Principia não oferecem tal explicação. O ensaio de Leibniz, por outro lado, tem precisamente esse objetivo: fornecer uma explicação mecanicista do movimento planetário. Trata-se, portanto, de uma das demonstrações mais evidentes do compromisso contínuo de Leibniz com o programa mecanicista, fundamentado nas noções de tamanho, forma e movimento.
Esses escritos não esgotam, de modo algum, os interesses científicos de Leibniz nesse período, do qual datam inúmeras outras notas e publicações[39]. No entanto, o que é especialmente interessante é a maneira como o novo programa leibniziano para a física se infiltra em seus escritos mais filosóficos, particularmente nas décadas de 1680 e 1690.
Na visão de Leibniz — como veremos com mais detalhes adiante –, o novo programa da física está intimamente ligado a seus projetos filosóficos mais amplos. Assim, seu entusiasmo por sua nova física transborda para obras como o Discurso de Metafísica, sua correspondência filosófica (particularmente as cartas trocadas com Arnauld no final da década de 1680), ensaios como a Correção da Metafísica (1694) e o Novo Sistema (1695). O mais interessante aqui é um ensaio que Leibniz publicou em 1698, Sobre a Própria Natureza, no qual, como anuncia no subtítulo, trata “da força inerente e das ações das coisas criadas, para confirmar e ilustrar sua dinâmica”.
É nas décadas de 1680 e 1690 que Leibniz se dedica mais ativamente a elaborar sua física e as questões metafísicas a ela associadas. Seu interesse pela física não desaparece em seus escritos posteriores; ele continua a discutir suas ideias sobre física e seus fundamentos com diversos correspondentes, como evidenciado, por exemplo, em suas trocas com De Volder, Des Bosses e, especialmente, na correspondência que manteve, já no fim da vida, com Samuel Clarke, que atuava como representante do grande Sir Isaac Newton[40]. Entretanto, ao final da década de 1690, pode-se dizer que as concepções fundamentais de Leibniz sobre a física e seus fundamentos estavam bem estabelecidas. Sem ignorar seus escritos posteriores, buscarei oferecer uma visão geral do pensamento leibniziano sobre física ao longo dessas duas décadas cruciais. Antes de nos aprofundarmos nos detalhes, será útil introduzir uma distinção implícita nos escritos de Leibniz sobre o mundo natural — uma distinção que ajudará a organizar a discussão que se seguirá.
Ao longo de seus escritos maduros, Leibniz se alinha aos mecanicistas contra a filosofia Escolástica e contra a tentativa newtoniana de expandir o mecanicismo por meio da introdução da gravidade — uma força que alguns newtonianos, se não o próprio Newton, consideravam inexplicável em termos mecanicistas. No entanto, para Leibniz, a física mecanicista não é fundamental em um sentido crucial. Ele escreve, em um trecho característico do Discurso de Metafísica (1686):
“Embora todos os fenômenos particulares da natureza possam ser explicados matematicamente ou mecanicamente por aqueles que os compreendem, ainda assim, os princípios gerais da natureza corpórea e da própria mecânica são mais metafísicos do que geométricos, e pertencem a certas formas ou naturezas indivisíveis como causas das aparências, em vez de pertencerem à massa corpórea ou à extensão.” (Discurso, par. 18, G IV 444: AG 51–52)[41].
Essas “formas ou naturezas indivisíveis” dizem respeito às substâncias corpóreas, que, como veremos, são caracterizadas nos escritos físicos de Leibniz segundo a noção de força. Isso sugere que há, pelo menos, dois níveis distintos na filosofia natural de Leibniz. No nível superficial, por assim dizer, está a filosofia mecanicista, na qual tudo é explicado em termos de tamanho, forma e movimento, assumindo que o movimento obedece a certas leis. Esse nível, creio eu, é o que Leibniz frequentemente considerava como a física propriamente dita. No entanto, abaixo dessa física está a ciência que trata da força e das entidades metafísicas — isto é, das substâncias corpóreas às quais a força, propriamente dita, pertence e das quais derivam tanto o movimento quanto suas leis. Essa ciência é o que Leibniz denominou dinâmica[42]. Leibniz claramente concebia a dinâmica como intimamente relacionada à metafísica. No entanto, a relação entre as substâncias corpóreas, caracterizadas em termos de força, e as substâncias individuais — posteriormente chamadas de mônadas — que dominam seus escritos metafísicos mais tardios, permanece obscura, como veremos[43].
No restante neste ensaio, desejo concentrar-me nas categorias mais diretas da física e da dinâmica. Esses dois níveis são difíceis de separar completamente e tratar de maneira independente. Começarei discutindo o nível dinâmico na filosofia natural de Leibniz, isto é, a noção de força, antes de abordar as noções de espaço, forma e movimento que constituem a concepção leibniziana de física propriamente dita.
3. FORÇA: O NÍVEL DINÂMICO
3.1 A REFUTAÇÃO DA DOUTRINA CARTESIANA DOS CORPOS
A física cartesiana ainda estava bastante presente quando Leibniz começou a desenvolver suas próprias ideias sobre a física, nas décadas de 1670 e 1680. Um ponto de partida razoável para apresentar sua concepção de mundo físico é a rejeição da doutrina cartesiana sobre a natureza dos corpos e sua defesa de uma concepção baseada na noção de força, que fundamenta sua dinâmica.
Para Descartes e seus numerosos seguidores, a essência do corpo era a extensão; para ele, os corpos eram os objetos da geometria tornados reais. Como consequência, sustentava que todas as propriedades dos corpos eram, em sentido amplo, geométricas, incluindo tamanho, forma, posição relativa a outros corpos e movimento. Esse princípio era central para o mecanicismo cartesiano: pois, uma vez que tudo o que há no corpo é extensão e seus modos, tudo na física deveria ser explicado nesses termos[44].
Leibniz compartilhava da filosofia mecanicista dos cartesianos; para ele, também, tudo era explicável em termos de tamanho, forma e movimento. No entanto, embora concordasse com a física cartesiana, não aceitava a metafísica que fundamentava o mecanicismo de Descartes. Se os corpos podem ser extensos, Leibniz argumentava que essa não era sua essência. Leibniz apresenta uma série de argumentos interessantes contra a concepção cartesiana de corpo, partindo de diferentes premissas e conduzindo a diferentes conclusões.
Primeiramente, há argumentos que demonstram a insuficiência da noção de extensão para definir o corpo. Leibniz argumenta que a extensão não pode ser a essência do corpo, como afirmam Descartes e seus seguidores, porque a extensão não é algo que possa constituir a essência de qualquer coisa. Segundo ele, trata-se de um conceito relativo, que só pode ser compreendido em relação a alguma qualidade ou outra coisa que seja extensa (ver, por exemplo, G IV 467; carta a Malebranche, 1693–94?; G I 352; a De Volder, 24 de março/3 de abril de 1699, G II 169–70: AG 171–72; G IV 393–94: AG 251; G VI 584: AG 261).
Leibniz também apresenta um argumento um tanto enigmático ao afirmar que, na medida em que os corpos no mundo real são, de fato, divididos ao infinito, eles não possuem forma em sentido estrito. Como não se pode ter algo extenso sem forma, a extensão não pode constituir a essência do corpo[45]. Esses argumentos, por mais interessantes que sejam, afastam-nos da posição cartesiana, mas não conduzem claramente a outra alternativa.
No entanto, há outros argumentos que oferecem uma visão mais profunda da posição de Leibniz. Um dos mais importantes é o que se poderia chamar de argumento do agregado. Esse é o principal argumento que ele utiliza contra a ontologia mecanicista em suas cartas a Arnauld, no final da década de 1680. Nelas, Leibniz se concentra no fato de que, para a maioria dos mecanicistas cartesianos, o corpo é infinitamente (ou, para usar a expressão de Descartes, indefinidamente) divisível[46].
Em sua correspondência com Arnauld, Leibniz afirma:
“Sustento como proposição fundamental, diferenciada apenas pela ênfase, um axioma, a saber: o que não é verdadeiramente um ente também não é verdadeiramente um ser” (Carta a Arnauld, 30 de abril de 1687; G II 97: AG 86).
Dessa forma, Leibniz conclui que os entes últimos em seu sistema devem ser coisas que são genuinamente unas ou verdadeiras unidades. Assim, ele argumenta que a realidade dos agregados deve depender da realidade dos indivíduos que os compõem:
“Não concordo que haja apenas agregados de substâncias, e, se existem agregados de substâncias, também deve haver substâncias verdadeiras das quais todos os agregados resultam” (Carta a Arnauld, 30 de abril de 1687; G II 96: AG 85).
Ora, Leibniz sustenta que as coisas extensas — pelo menos as inanimadas — são, por sua própria natureza, agregados. Qualquer corpo, tomado isoladamente, é apenas um agregado das partes em que pode ser dividido (ver a discussão na Carta a Arnauld, 28 de novembro/8 de dezembro de 1686; G II 76: AG 79). E assim, Leibniz conclui:
Devemos, então, necessariamente recorrer a uma das seguintes alternativas: ou aos pontos matemáticos, dos quais para alguns se constitui a extensão; ou aos átomos de Epicuro ou de Cordemoy (os quais tu, assim como eu, rejeita); ou, ainda, admitir que não encontramos nenhuma realidade nos corpos; ou, por fim, reconhecer a existência de substâncias que possuem uma verdadeira unidade. (Carta a Arnauld, 30 de abril de 1687; G II 96: AG 85)
Ou seja, para que os corpos extensos sejam reais, eles devem, em última instância, ser compostos por entidades que sejam unidades verdadeiras, algo que não pode ser encontrado na extensão por si só[47]. O argumento do agregado baseia-se no fato de que, nos corpos infinitamente divisíveis dos cartesianos, não há indivíduos genuínos e, portanto, nenhuma realidade em sentido próprio. No entanto, Leibniz avança ainda mais em outro argumento.
Na seção 13 do importante ensaio Sobre a Própria Natureza (1698), ele apresenta um argumento geral que pretende demonstrar que, se o mundo está plenamente preenchido por matéria e se essa matéria é uniforme em sua natureza (duas consequências diretas da doutrina cartesiana do corpo como extensão), então a mudança seria impossível. Leibniz argumenta:
Pois, se nenhuma porção de matéria fosse diferente de porções iguais e congruentes de matéria… e, além disso, se um estado momentâneo diferisse de outro apenas em virtude do transporte de porções de matéria iguais e intercambiáveis, porções essas em todos os aspectos idênticas, então, devido a essa perpétua substituição de indistinguíveis, segue-se claramente que no mundo corpóreo não pode haver nenhum meio de distinguir diferentes estados momentâneos entre si. (G IV 513: AG 163–64)
O problema que Leibniz identifica aqui não é meramente epistemológico — isto é, não se trata apenas de nossa incapacidade de determinar se o mundo está mudando (embora, dada nossa experiência evidente de mudança, isso já fosse um problema sério para o mecanicista). O problema é ainda mais profundo: dentro das concepções mecanicistas de corpo, nem mesmo faz sentido falar de identidade e diferença entre corpos. Como ele conclui:
Sob a suposição de perfeita uniformidade da matéria, não há como distinguir um lugar de outro, ou uma porção de matéria de outra porção de matéria no mesmo lugar. (G IV 513–14: AG 164).
Esses argumentos estabelecem que os corpos não podem estar fundamentados apenas na extensão geométrica, mas devem se basear em algum tipo de unidade ou em indivíduos genuínos. A concepção leibniziana desses indivíduos é aprofundada em outra série de argumentos contra a doutrina cartesiana dos corpos, que enfatizam as noções de força e atividade.
Em primeiro lugar, há a sugestão de que a visão cartesiana do corpo é refutada pela própria refutação do princípio cartesiano de conservação. Quando substituímos a conservação do produto do tamanho pela rapidez, pelo princípio de conservação do mv2, segue-se que devemos introduzir algo no corpo além da mera extensão. Leibniz escreve a Bayle sobre sua nova lei da conservação, logo após a publicação da Brevis Demonstratio:
Gostaria de acrescentar uma observação de grande consequência para a metafísica. Demonstrei que a força não deve ser estimada pelo produto do tamanho pela rapidez, mas sim pelo efeito futuro. No entanto, parece que a força ou potência é algo real no presente, enquanto o efeito futuro ainda não o é. Disso se segue que devemos admitir nos corpos algo além de tamanho e velocidade, a menos que se queira negar-lhes qualquer poder de ação. (Carta a Bayle, 9 de janeiro de 1687; G III 48)
O argumento é um tanto obscuro, mas parece que Leibniz pressupõe o seguinte: para o cartesiano, tudo o que há no corpo deve ser geométrico — ou seja, tamanho e velocidade. No entanto, se a capacidade de trabalho é conservada (por exemplo, a capacidade de um corpo elevar-se a uma determinada altura), então o que se conserva não é o tamanho pela rapidez, mas sim o tamanho pela rapidez ao quadrado[48]. Isso significa que nem o tamanho, nem a velocidade (nem seu produto) podem representar, em um dado momento n, a capacidade de trabalho que um corpo terá futuramente. Mas, como o corpo possui realmente essa capacidade em n, deve haver algo nele que lhe confira essa capacidade futura, algo que vai além de suas propriedades geométricas. Esse algo é o que Leibniz chama de força[49].
Talvez mais inteligível seja outro tipo de argumento ao qual Leibniz recorre, derivado da ideia de que os corpos cartesianos — os objetos da geometria tornados reais — devem ser completamente inertes e indiferentes ao movimento ou ao repouso. Esse argumento aparece em uma ampla variedade de textos do final da década de 1680 e ao longo da década de 1690. Leibniz esboça esse raciocínio no Discurso de Metafísica:
Se não houvesse nada nos corpos além de massa extensa e nada no movimento além da mera mudança de lugar, e se tudo devesse e pudesse ser deduzido exclusivamente dessas definições por necessidade geométrica, seguir-se-ia… que, ao entrar em contato, o menor corpo transmitiria toda a sua velocidade ao maior sem perder nada dessa velocidade; e teríamos que aceitar uma série de regras desse tipo, que são completamente contrárias à formação de um sistema. (Discurso de Metafísica, §21; G IV 446–47: AG 53–54)[50]
O argumento de Leibniz é bastante claro. Se os corpos fossem apenas extensos, como afirmam os cartesianos, então deveriam obedecer a certas leis do movimento que levam ao absurdo. Em particular, o menor corpo em movimento poderia mover o maior corpo em repouso sem perder qualquer parte de seu próprio movimento — como na própria física inicial de Leibniz. Contudo, isso contradiz tanto a experiência quanto a metafísica. Em um mundo governado por tal lei, a quantidade mv2 em uma colisão poderia aumentar ou diminuir dependendo das circunstâncias, resultando em violações do princípio da equivalência entre causa e efeito. Assim, Leibniz conclui que deve haver algo nos corpos além da mera extensão, algo do qual a força de resistência possa emergir[51].
No entanto, esse argumento não é inteiramente justo com Descartes e seus seguidores. As leis que Leibniz critica nesse raciocínio não pertencem a Descartes nem a seus seguidores; o próprio Descartes reconhecia certo tipo de resistência nos corpos; algo que ele atribuía a Deus como a fonte última do movimento no mundo físico[52].
Mas isso não era suficiente para Leibniz. Em 1702, ele escreve:
“Embora, em sua origem, os [movimentos] devam ser atribuídos a Deus, causa geral de todas as coisas, em casos particulares devem ser atribuídos à força que Deus infundiu nelas. Pois dizer que, na criação, Deus deu aos corpos uma lei para agir nada significa, a menos que, ao mesmo tempo, Ele lhes tenha dado algo por meio do qual essa lei possa ser seguida; do contrário, Ele próprio teria sempre que zelar pelo cumprimento da lei de maneira extraordinária. Mas, com efeito, sua lei é eficaz, e ele tornou os corpos eficazes, ou seja, deu-lhes uma força inerente.” (G IV 396–97: AG 253–54; cf. SD parte I, par. 11, GM VI 241–42: AG 125; Sobre a Própria Natureza, G IV 508–09: AG 159–60; G IV 568: L 583).
Mas, se a força está nos próprios corpos, então eles não podem ser as coisas inertes e extensas que pensavam os cartesianos. Esses argumentos demonstram que os corpos, conforme concebidos pela filosofia mecanicista, não são meramente extensos. Em vez disso, Leibniz argumenta que eles são fundamentados em verdadeiras unidades, que constituem o princípio das forças no mundo. No entanto, para compreender plenamente a posição de Leibniz, é necessário esclarecer exatamente o que ele entende por “força”. É a essa questão que devemos agora nos voltar.
3.2 CORPO E FORÇA
A noção de força foi central para o pensamento maduro de Leibniz desde suas origens, no final da década de 1670. No início do século XVII, o conceito de força não possuía um significado único e bem definido, nem mesmo nos primeiros escritos de Leibniz[53]. No entanto, ao longo das décadas de 1680 e 1690, essa noção foi progressivamente se tornando um termo técnico mais preciso. As distinções que Leibniz estabelece entre os diferentes tipos de força não surgem todas de uma vez, senão que, por volta de 1695. A ontologia leibniziana da força e sua relação com as noções de corpo e substância são então apresentadas de maneira organizada e sistemática no Specimen Dynamicum (SD).
No SD e em escritos relacionados, Leibniz formula uma concepção de força baseada em duas distinções fundamentais: a distinção entre forças primitivas e derivadas e a distinção entre forças ativas e passivas. Assim, ao todo, Leibniz estabelece quatro tipos principais de força: força ativa primitiva, força passiva primitiva, força ativa derivada e força passiva derivada. Leibniz escreve:
“No que se refere à força ativa (que, com alguns, se poderia chamar de virtude), esta é dupla: a saber, primitiva, estando presente em toda substância corpórea por si mesma (pois creio que um corpo inteiramente em repouso repugna à natureza das coisas); ou derivativa, exercida de forma variada, como uma limitação da força primitiva resultante dos choques entre os corpos. Sem dúvida, a força primitiva (que nada mais é do que a primeira enteléquia [entelecheia hê prôte]) corresponde à alma ou à forma substancial, mas, por isso mesmo, diz respeito apenas às causas gerais, que não podem ser suficientes para explicar os fenômenos. Assim, concordamos com aqueles que negam que se deva recorrer às formas para a determinação das causas próprias e específicas das coisas sensíveis — vale a pena advertir isso, para que, ao reconduzi-las ao lugar de princípio originário, como um retorno às fontes das coisas, não pareça que desejamos, ao mesmo tempo, restaurar as vãs discussões da Escola.
Entretanto, é necessário conhecer essas noções para filosofar corretamente, e ninguém deve considerar que compreende suficientemente a natureza do corpo sem ter dirigido sua atenção a tais questões e sem ter entendido que é grosseira — para não dizer falsa — qualquer noção de substância corpórea que dependa apenas da imaginação. Com efeito, devido a um abuso da filosofia corpuscular (por si mesma eminente e certíssima), tem-se introduzido, nos últimos anos, de maneira incauta, uma concepção segundo a qual a matéria não excluiria por completo o repouso e a quietude absolutos, nem poderia fornecer razões para as leis que regem a força derivativa da natureza.
Do mesmo modo, a força passiva também é dupla: primitiva e derivativa. A força primitiva de suportar ou resistir constitui, sem dúvida, aquilo que, se corretamente interpretado, é denominado nas Escolas matéria primeira[54], pela qual um corpo, evidentemente, não pode ser penetrado por outro e lhe opõe resistência. Ao mesmo tempo, essa força é dotada de certa incerteza, por assim dizer; ou seja, uma repugnância ao movimento, não se deixando impulsionar pela força do agente sem que esta seja, de algum modo, reduzida. Daí decorre que a força derivativa de suportar se manifesta de maneira variada na matéria segunda.
Nosso objetivo, porém, é — tendo abstraído e tomado como pressuposto esses princípios gerais e primitivos, pelos quais se nos ensina que, por sua forma, todo corpo sempre age, e por sua matéria, todo corpo sempre suporta e resiste — avançar ainda mais e tratar, nesta doutrina, das virtudes e resistências derivativas, examinando até que ponto os corpos são eficazes por seus variados esforços ou, ao contrário, resistem de diferentes maneiras. Pois é a essas diferenças que se ajustam as leis das ações, as quais não apenas são inteligíveis pela razão, mas também se confirmam pela própria sensação por meio dos fenômenos.” (SD, part I, par. 31 GM IV 236–7: AG 119–20)[55]
Comecemos examinando as noções de força ativa e força passiva. Leibniz escreve no Specimen Dynamicum (SD):
“A força ativa possui dois tipos. O primeiro é a força elementar, que também denomino força morta, pois nela há apenas uma tendência ao movimento, e não movimento propriamente dito — como no caso de uma bola dentro de um tubo ou de uma pedra em uma funda equilibrada por uma corda. O segundo tipo é a força ordinária, que ocorre com um movimento atual e que chamo de força viva (vis viva). A força centrífuga, a força da gravidade (vis gravitatis) ou força centrípeta, bem como a força que faz um corpo elástico tensionado recuperar sua forma, são exemplos de força morta. Já no impacto de um corpo pesado que esteve em queda por certo tempo, no retorno de um arco à sua forma original ou em casos semelhantes, trata-se da força viva, que surge da acumulação contínua de impressões da força morta.” (SD, parte I, par. 6, GM VI 238: AG 121–22).
Isso sugere que a força ativa está associada à velocidade e à aceleração — mais especificamente, que a força morta está ligada à aceleração, enquanto a força viva está associada ao movimento atual. No entanto, embora estejam relacionadas, as forças ativas não devem ser identificadas com o movimento ou com a aceleração; o movimento e a mudança no movimento (aceleração) não são forças em si mesmas, como veremos mais adiante na seção 4.2, mas sim os efeitos das forças.
Além disso, o argumento do Brevis Demonstratio (BD) demonstra que aquilo que se conserva na natureza não é o produto do tamanho pela rapidez (mv), mas sim do tamanho pelo quadrado da rapidez (mv²). Assim, se o que se conserva no movimento é a força (força viva), então a força não deve ser identificada simpliciter com o movimento, pois, quando a velocidade é duplicada, a força é quadruplicada. A força passiva, por sua vez, é algo completamente diferente[56]. Como sugerido na passagem anterior do SD, a força passiva não está relacionada ao movimento, mas sim à resistência ao movimento. Essa resistência é de dois tipos[57].
Primeiramente, há a impenetrabilidade, “pela qual um corpo não pode ser penetrado por outro corpo”. Mas, além disso, há também um tipo de força passiva pela qual os corpos se opõem ativamente ao movimento que outros corpos tentam impor-lhes em um impacto — o que Leibniz chama de “certa inércia” (ignavia quadam). Essa resistência é algo muito diferente da simples tendência dos corpos a permanecer em um estado determinado; uma noção fundamental no pensamento de Descartes, Hobbes e Spinoza. Leibniz escreve ao cartesiano De Volder:
“Admito que cada coisa permanece em seu estado até que haja uma razão para a mudança; esse é um princípio de necessidade metafísica. Mas há uma grande diferença entre simplesmente reter um estado até que algo o altere — o que até mesmo algo intrinsecamente indiferente a ambos os estados faz — e, por outro lado, algo muito mais significativo: o fato de que uma coisa não seja indiferente, mas possua uma força e, por assim dizer, uma inclinação para manter seu estado, e, assim, resistir à mudança.” (Carta a De Volder, 24 de março/3 de abril de 1699; G II 170: AG 172)[58].
É essa força de resistência que desacelera o corpo em movimento ao colidir com um corpo em repouso, permitindo a Leibniz evitar o resultado que tanto comprometeu sua física inicial. Assim como ocorre com as forças ativas, Leibniz distingue as forças passivas do comportamento dos corpos que elas causam. No Specimen Dynamicum (SD), ele faz questão de caracterizar a força passiva como “aquilo pelo qual ocorre” que os corpos possuam impenetrabilidade e resistência; as forças passivas são as causas desse comportamento, da mesma forma que as forças ativas são as causas do movimento.
A força passiva também parece ser a causa (em um sentido um tanto ampliado) da extensão de um corpo. Em uma carta a Arnauld, Leibniz discute a “virtude passiva primitiva [isto é, força]” de uma substância como sendo sua matéria e afirma que “nesse sentido, a matéria não seria extensa ou divisível, embora fosse o princípio da divisibilidade ou aquilo que equivale a isso na substância” (Carta a Arnauld, 9 de outubro de 1687, G II 120; ver também G IV 394: AG 251). A visão de Leibniz parece ser que a extensão de um corpo nada mais é do que a difusão da resistência; a extensão, propriamente falando, é uma consequência direta da propriedade que os corpos possuem pela qual resistem à penetração por outros corpos.
Agora, voltemo-nos para a distinção entre forças primitivas e forças derivativas. Na passagem do SD citada anteriormente, Leibniz caracteriza a força ativa primitiva como correspondente à “alma ou forma substancial”. A força passiva primitiva, por sua vez, é descrita como constituindo “aquilo que é chamado de matéria primeira nas Escolas, se corretamente interpretado”.
Forma e matéria são, naturalmente, termos técnicos da concepção aristotélica de substância; como discutido anteriormente, ao caracterizar essa concepção na seção 1, forma e matéria se unem para constituir uma substância, tanto para Aristóteles quanto para seus seguidores. O mesmo ocorre com Leibniz. Ele escreve, em um ensaio de maio de 1702:
“A força ativa primitiva, que Aristóteles chama de enteléquia primeira e que comumente se denomina forma substancial, é outro princípio natural que, juntamente com a matéria ou força passiva primitiva, completa uma substância corpórea. Essa substância, naturalmente, é uma unidade per se, e não um mero agregado de muitas substâncias, pois há uma grande diferença entre um animal, por exemplo, e um rebanho.” (G IV 395: AG 252).
Assim, parece que as forças primitivas, ativa e passiva, se unem para compor a substância corpórea — a verdadeira unidade que, segundo Leibniz, fundamenta os corpos extensos da física.
As forças derivativas, em contraste, são as forças de maior interesse para o físico. Leibniz escreve no Specimen Dynamicum:
“Portanto, por força derivativa, ou seja, aquela pela qual os corpos efetivamente agem uns sobre os outros ou são afetados uns pelos outros, entendo apenas aquilo que está ligado ao movimento (movimento local, naturalmente) e que, por sua vez, tende ainda mais a produzir movimento local. Pois reconhecemos que todos os outros fenômenos materiais podem ser explicados pelo movimento local.” (SD, parte I, par. 4, GM VI 237: AG 120).
Além disso, é em termos da força derivativa que podemos formular as leis da física. Leibniz escreve, ainda no SD:
“São essas as noções [ou seja, as forças derivativas] que se aplicam as leis das ações; leis que não apenas são compreendidas pela razão, senão que, são corroboradas pela própria sensação por meio dos fenômenos.” (SD, parte I, par. 3, GM VI 237: AG 120).
Leibniz utiliza vários termos para descrever a relação entre forças primitivas e derivativas. No SD, ele fala da força derivativa como resultante de “uma limitação da força primitiva por meio da colisão dos corpos entre si” (SD, parte I, par. 3, GM VI 236: AG 119).
No primeiro rascunho do Novo Sistema (c. 1694), ele escreve:
“[Chamo de forma ou enteléquia] a força primitiva, a fim de distingui-la da força secundária [isto é, força derivativa]; ou seja, aquela que se denomina força motriz, a qual é uma limitação ou variação acidental da força primitiva.” (G IV 473).
Da mesma forma, ele escreve a Bernoulli em 1698:
“Se concebemos a alma ou forma como a atividade primária, da qual emergem forças secundárias — isto é, derivativas — assim como as formas resultam da modificação da extensão, então, creio, consideramos suficientemente o intelecto.Com efeito, não pode haver modificações ativas daquilo que é meramente passivo em sua essência, pois as modificações limitam, em vez de aumentar ou adicionar algo.” (Carta a Bernoulli, 17 de dezembro de 1698, GM III 552: AG 169).
E, por fim, Leibniz escreve no ensaio de maio de 1702 que “a força ativa é dupla: primitiva e derivativa, isto é, substancial ou acidental” (G IV 395: AG 252). Essas passagens sugerem que as forças derivativas devem ser entendidas como modos, acidentes ou algo semelhante — modificações das forças primitivas, que, por sua vez, são concebidas como substâncias ou, mais precisamente, como constituintes das substâncias corpóreas.
Assim, as forças ativas e passivas primitivas são o fundamento substancial das forças ativas e passivas derivativas, que são seus acidentes ou modos, assim como a forma é um acidente ou modo de um ente extenso.
O quadro do mundo físico que emerge do Specimen Dynamicum (SD) e de escritos relacionados resguarda enorme pungência, pois combina elementos do Escolasticismo com o Mecanicismo. Na base metafísica, encontram-se as substâncias corpóreas, unidades de forma e matéria, dotadas de forças primitivas ativas e passivas. Essas forças, por sua vez, fundamentam as forças derivativas, que são modos ou acidentes dessas forças primitivas — ou seja, seus estados momentâneos, que podem mudar, assim como as formas mudam em uma substância extensa.
As forças derivativas, tanto ativas quanto passivas, são, então, a causa imediata do movimento, da resistência, da impenetrabilidade e até da extensão dos corpos, dando origem ao mundo mecanicista de corpos extensos em movimento, e obedecendo a certas leis. Dessa forma, Leibniz pode afirmar, como vimos, que tudo no mundo ocorre mecanicamente, mas que o mundo dos filósofos mecanicistas está fundamentado em algo completamente distinto da matéria extensa e do movimento: uma metafísica aristotélica da forma substancial e da matéria primeira.
A dinâmica — isto é, a ciência da força — é o elo que liga essa metafísica aristotélica subjacente à física dos mecanicistas. A formulação definitiva dessa doutrina, com sua distinção precisa entre forma e matéria, forças primitivas e derivativas, e forças ativas e passivas de diferentes tipos, pode não aparecer até meados da década de 1690; mas a concepção fundamental já está integrada ao pensamento de Leibniz sobre o mundo físico desde a década de 1680[59].
Na quarta seção deste ensaio, voltaremos nossa atenção à física mecanicista que Leibniz constrói sobre os fundamentos da dinâmica. No entanto, antes disso, precisamos nos voltar na outra direção, à metafísica, e examinar a relação entre a metafísica aparentemente aristotélica que parece fundamentar o SD e a concepção de substância que subjaz aos escritos metafísicos mais familiares de Leibniz.
3.3 A DINÂMICA E METAFÍSICA DA SUBSTÂNCIA
O mundo das forças que Leibniz delineia no Specimen Dynamicum (SD) e em escritos correlatos baseia-se nas forças primitivas ativas e passivas que ele postula, interpretando-as como a forma e a matéria da substância corpórea. No entanto, surge a questão: qual é o status dessas substâncias corpóreas dentro na complexa metafísica de Leibniz? Infelizmente, a resposta para essa questão não é inteiramente clara. Um leitor atento pode encontrar pelo menos duas vertentes distintas nos escritos de Leibniz[60].
Uma dessas vertentes aparece de maneira muito proeminente nas décadas de 1680 e 1690, período em que Leibniz estava mais ativamente desenvolvendo sua física. Segundo essa visão, são as substâncias corpóreas dos escritos dinâmicos que constituem o fundamento metafísico do sistema de Leibniz. Essa concepção decorre naturalmente do argumento do agregado, discutido na seção 3.1, especialmente no contexto da correspondência com Arnauld. O ponto central do argumento é demonstrar que a extensão, por si só, não é suficiente para constituir um corpo e que, subjacentes à extensão, deve haver substâncias genuínas. Essas substâncias são, de maneira bastante evidente, as substâncias corpóreas que servem de fundamento para a dinâmica.
Leibniz é bastante explícito ao afirmar que o ser humano é uma unidade, composta tanto de corpo quanto de alma. Ele escreve:
“O homem… é um ente dotado de verdadeira unidade, conferida por sua alma, apesar de a massa de seu corpo estar dividida em órgãos, vasos, humores e espíritos, e de suas partes estarem, sem dúvida, repletas de um número infinito de outras substâncias corpóreas, cada uma com sua própria enteléquia.” (Carta a Arnauld, 9 de outubro de 1687, G II 120; ver também Carta a Arnauld, 28 de novembro/8 de dezembro de 1686, G II 75: AG 78).
Aqui, o corpo é concebido como uma coleção de substâncias corpóreas, unificadas por uma alma, que lhes confere uma verdadeira unidade. Cada uma das substâncias corpóreas que compõem o corpo humano é, em si mesma, um corpo (isto é, uma coleção de substâncias corpóreas menores), unificado por sua própria alma. De maneira geral, Leibniz parece sustentar que todas as substâncias genuínas devem ser entendidas como criaturas viventes, que sob certo aspecto são análogas ao ser humano — unidades de alma e corpo — e que o mundo está repleto de uma infinidade dessas substâncias genuínas, infinitamente aninhadas umas dentro das outras Leibniz escreve a Arnauld:
“Estou longe de acreditar que os corpos animados sejam apenas uma pequena parte entre os demais. Pelo contrário, creio que tudo está repleto de corpos animados e, a meu ver, há incomparavelmente mais almas do que átomos, ao contrário de M. Cordemoy, que admite um número finito delas; não obstante, sustento que o número de almas, ou ao menos de formas, é verdadeiramente infinito, e que, como a matéria é divisível ao infinito, não se pode fixar uma parte tão pequena que não contenha corpos animados, ou ao menos corpos dotados de uma enteléquia fundamental ou (se for permitido usar o termo ‘vida’ em sentido tão amplo) de um princípio vital; ou seja, de substâncias corpóreas, sobre as quais se pode dizer, de maneira geral, que todas são viventes.” (Carta a Arnauld, 9 de outubro de 1687, G II 118).
Essas substâncias corpóreas, concebidas por analogia com os animais, são, creio eu, os constituintes fundamentais do mundo para Leibniz. Embora ele reconheça a existência de almas e formas, ele demonstra incerteza quanto a se elas realmente merecem o status de substâncias. Em um documento muito interessante de março de 1690, contendo comentários sobre algumas observações de Michel Angelo Fardella, Leibniz afirma:
“A alma, propriamente e com rigor, não é uma substância, mas uma forma substancial, ou a forma primitiva existente nas substâncias, o primeiro ato, a primeira faculdade ativa.” (Notas sobre Fardella, março de 1690, FC 322: AG 105).
E mesmo que a alma ou forma fosse uma substância, Leibniz deixa claro que ela nunca existe de fato sem estar ligada a um corpo (ver, por exemplo, G IV 395–96: AG 252–53).
Particularmente significativas são as primeiras ocorrências do termo mônada na filosofia de Leibniz, que entra em seu vocabulário filosófico no final da década de 1690. Em uma carta a Johann Bernoulli, de setembro de 1698, Leibniz observa:
“O que chamo de mônada completa ou substância individual não é tanto a alma, mas sim o animal em si, ou algo análogo a ele, dotado de uma alma ou forma e de um corpo orgânico.”
(Carta a Johann Bernoulli, 20/30 de setembro de 1698, GM III 542: AG 168).
E, na mesma carta, ele escreve:
“Pediste-me que dividisse uma porção de massa nas substâncias que a compõem. Respondo: há tantas substâncias individuais nela quantos são os animais ou seres vivos ou coisas análogas a eles.” (ibid., GM III 542: AG 167)[61].
Embora o mundo físico possa estar fundamentado em tais substâncias — pequenos animais — nem todo corpo é animado, evidentemente. No entanto, Leibniz argumenta que os corpos inanimados da física são compostos por tais substâncias viventes.
Nesse modelo, os corpos emergem como algo semelhante a um monte de pedras, ou, de maneira mais precisa, a um rebanho de ovelhas ou a um cardume de peixes em constante movimento — comparações frequentemente usadas por Leibniz. Segundo essa concepção, os corpos, pelo menos os corpos inanimados, são fenomênicos no sentido de que somos nós que agrupamos suas partes (as substâncias animadas) para formar um indivíduo. Leibniz explica isso a Arnauld:
“Nossa mente percebe ou concebe algumas substâncias verdadeiras que possuem certos modos; esses modos envolvem relações com outras substâncias, de modo que a mente aproveita a ocasião para reuni-las no pensamento e atribuir um único nome a todas essas coisas juntas. Isso é útil para o raciocínio, mas não devemos nos deixar enganar e transformar tais agrupamentos em substâncias ou entes verdadeiros.” (Carta a Arnauld, 30 de abril de 1687, G II 101: AG 89).
Nessa concepção, torna-se relativamente fácil a integração da ontologia do Specimen Dynamicum (SD) e de outros escritos dinâmicos à metafísica mais ampla de Leibniz. Sob essa perspectiva, as forças primitivas ativas e passivas da dinâmica correspondem, de maneira razoável, à forma e à matéria nos escritos metafísicos[62]. Assim, as forças derivativas emergem como modos da substância corpórea, e sua realidade nos corpos inanimados se fundamenta nas substâncias corpóreas que os compõem[63].
No entanto, essa não é a única concepção metafísica que Leibniz tem do mundo, nem a única maneira pela qual ele concebe os fundamentos metafísicos de sua dinâmica. A concepção mais conhecida é aquela que se encontra na Monadologia, onde as substâncias individuais de Leibniz — que ele passa a chamar de mônadas — não são concebidas à semelhança de animais, mas sim segundo o modelo das almas cartesianas (ver Carta a De Volder, 1699, G II 194: L 522). Embora traços dessa posição possam ser encontrados em praticamente todos os períodos da maturidade de Leibniz, é essa concepção que parece dominar a partir de 1704 ou 1705.
Nos escritos tardios, como a Monadologia, Leibniz ainda sustenta que o mundo físico é composto por organismos, e que esses organismos estão presentes por toda parte, mesmo na matéria aparentemente inanimada, como já afirmava em sua correspondência com Arnauld (ver, por exemplo, Monadologia, pars. 63 e seguintes, G VI 617–18: AG 221–22). No entanto, ele passa a sustentar que o que é realmente fundamental são as substâncias simples semelhantes à mente, e, de modo geral, ele passa a considerar que os organismos que povoam o mundo não são, em si mesmos, substâncias em sentido próprio da palavra.
Dessa forma, os corpos inanimados normalmente tratados pela física passam a ter uma estrutura um tanto mais complexo e podem ser considerados, em certo sentido, duplamente fenomênicas. Em primeiro lugar, são compostos por uma infinidade de seres vivos, ou organismos rudimentares. Mas esses próprios organismos também são fenomênicos, pois são agregados de substâncias genuínas — as mônadas — e não são plenamente reais em si mesmos (ver, por exemplo, Cartas a De Volder, 30 de junho de 1704, G II 268: AG 178–79; 1704 ou 1705, G II 275: AG 181; Antibarbarus Physicus, G VII 344: AG 319–20)[64].
Onde se encaixam as forças da SD dentro desse quadro metafísico? Uma resposta emerge do que Leibniz escreve a De Volder em 1704 ou 1705:
Não elimino propriamente o corpo, mas o reduzo ao que ele é. Pois demonstro que a massa corpórea, que se pensa possuir algo além das substâncias simples, não é uma substância, mas um fenômeno resultante das substâncias simples, as quais, somente elas, possuem unidade e realidade simpliciter. Relego as forças derivadas aos fenômenos, mas considero evidente que as forças primitivas não podem ser senão os esforços internos das substâncias simples, esforços por meio dos quais elas passam de percepção a percepção conforme uma lei fixa de sua natureza. (Carta a De Volder, 1704 ou 1705, G II 275: AG 181)[65]
De modo semelhante, Leibniz escreveu a Des Bosses em 1706:
“De uma multiplicidade de mônadas resulta a matéria segunda, juntamente com forças derivadas, ações e paixões, que são apenas entes por agregação e, portanto, semi-mentais, como o arco-íris e outros fenômenos bem fundados.” (Carta a Des Bosses, 11 de março de 1706, G II 306)[66]
Isso sugere o seguinte quadro: as forças primitivas, ativas e passivas, agora pertencem não às substâncias corpóreas, mas às mônadas; elas são identificadas com o que Leibniz chama de apetição, a atividade nas coisas pela qual uma mônada passa de um estado interno a outro. As forças derivadas, por outro lado, são relegadas aos fenômenos. Essas forças, que são a causa direta do movimento e, portanto, as de maior interesse para o físico, pertencem agora exclusivamente aos corpos. Embora fundamentadas em algo real — as mônadas ou substâncias simples –, elas pertencem apenas a agregados de mônadas e, assim, são irredutivelmente fenomênicas.
No entanto, essa pode não ter sido a opinião definitiva de Leibniz. A questão da possibilidade de uma substância composta genuína (como as substâncias corpóreas da correspondência com Arnauld) é um dos principais temas da correspondência com Des Bosses; nessas cartas, Leibniz busca determinar o que seria necessário para que tais coisas existissem em seu mundo das mônadas[67]. Em um apêndice à carta a Des Bosses de 19 de agosto de 1715, Leibniz apresentou uma representação diagramática de suas concepções sobre unidade e entes por agregação (G II 506: L 617). Ele começa distinguindo entre coisas que são indivíduos genuínos e entes por agregação. Nesse esquema, a força derivada (aqui chamada de potência derivada) aparece duas vezes: uma como modificação de uma substância composta, e outra como um “semi-acidente”, ou a modificação de uma “semi-substância”, um ente por agregação que, segundo Leibniz, deriva “das modificações de substâncias [genuínas]”.
Entretanto, a força ativa e passiva primitiva (aqui denominada potência ativa e passiva primitiva) aparece apenas uma vez no diagrama, na caracterização de uma substância composta, que, segundo Leibniz, “consiste em potência ativa e passiva primitiva; ou seja, consiste em matéria primeira, isto é, no princípio de resistência, e em forma substancial; ou seja, no princípio de ímpeto[68]”. Curiosamente, ela não aparece do outro lado do quadro, na caracterização das semi-substâncias. Nessa interpretação, se no mundo não há substâncias compostas (corpóreas) genuínas, então toda força derivada deve ser fenomênica. Mas, nesse caso, pareceria que não haveria forças primitivas de modo algum no mundo[69].
No fim das contas, não está claro exatamente como o mundo das dinâmicas — forças primitivas e derivadas, ativas e passivas — se encaixa no quadro metafísico mais amplo de Leibniz. Mas essa incerteza decorre das próprias dúvidas de Leibniz sobre os detalhes dessa metafísica, à medida que ela evoluiu desde a década de 1680 até o fim de sua vida.
3.4 A DINÂMICA E A REFUTAÇÃO DO OCASIONALISMO
A dinâmica de Leibniz era central para seu programa físico. Na próxima seção, veremos como sua concepção de força está conectada com sua visão de mundo mecanicista e das leis matemáticas que o regem. Contudo, a dinâmica também estava ligada a um tema importante na metafísica de Leibniz: a rejeição do ocasionalismo.
A doutrina do ocasionalismo era central para a metafísica do século XVII, especialmente entre os cartesianos. Segundo essa visão amplamente difundida, as mudanças que um corpo parece causar em outro ao colidir, as mudanças que um corpo pode causar em uma mente ao produzir uma sensação, ou que uma mente pode causar em um corpo ao gerar uma ação voluntária, devem-se todas diretamente a Deus, que move os corpos ou produz sensações nas mentes por ocasião de outros eventos apropriados. A doutrina do ocasionalismo é por vezes apresentada como tendo sido, primariamente, uma solução para o problema da interação entre mente e corpo: como é inconcebível que mentes e corpos possam interagir, argumenta-se que os filósofos do século XVII sustentaram que é Deus quem conecta o movimento dos órgãos sensoriais com a sensação na mente e a volição na mente com o movimento voluntário do corpo. No entanto, a motivação para essa doutrina entre a maioria dos filósofos do século XVII é, na realidade, um pouco diferente[70].
Para muitos dos seguidores posteriores de Descartes, o que é central na doutrina do ocasionalismo é a negação da eficácia das causas finitas unicamente em razão de sua finitude. Clerselier, por exemplo, argumenta em favor do ocasionalismo estabelecendo primeiro que apenas uma substância incorpórea pode causar movimento em um corpo. No entanto, ele afirma que somente uma substância infinita, como Deus, pode imprimir um novo movimento no mundo, “porque a distância infinita que há entre o nada e o ser só pode ser superada por uma virtude [virtus] que seja realmente infinita[71]”.
Cordemoy argumenta de modo semelhante. Assim como Clerselier, ele sustenta que apenas uma substância incorpórea pode ser a causa do movimento em um corpo, e que essa substância incorpórea só pode ser infinita; ele conclui dizendo que “nossa fraqueza nos informa que não é nossa mente que faz [um corpo] mover-se”, e, assim, conclui que aquele que imprime o movimento aos corpos e o conserva só pode ser “outra Mente, à qual nada falta, [que] o faz [ou seja, causa o movimento] por sua vontade[72]”.
Por fim, a infinitude de Deus é crucial para o principal argumento que Malebranche oferece em favor do ocasionalismo em sua obra central, De la Recherche de la Vérité. O título do capítulo em que Malebranche apresenta seus principais argumentos em favor da doutrina é “O erro mais perigoso na filosofia dos antigos[73]”. E o erro mais perigoso a que ele se refere é a crença de que as coisas finitas podem ser verdadeiras causas dos efeitos que parecem produzir — um erro que, segundo Malebranche, leva as pessoas a amar e temer coisas além de Deus, acreditando que são as causas genuínas de sua felicidade ou infelicidade[74].
Mas por que é um erro acreditar que as coisas finitas podem ser verdadeiras causas? Malebranche argumenta da seguinte maneira:
Tal como eu o entendo, uma causa verdadeira é aquela na qual a mente percebe uma conexão necessária entre a causa e seu efeito. Ora, é apenas em um ente infinitamente perfeito que se percebe uma conexão necessária entre sua vontade e seus efeitos. Assim, Deus é a única causa verdadeira, e somente ele possui verdadeiramente a virtude de mover os corpos. Além disso, afirmo que não é concebível que Deus comunique aos homens ou aos anjos a virtude que ele tem de mover os corpos[75].
Para esses ocasionalistas, portanto, Deus deve ser a causa do movimento no mundo, pois apenas uma substância infinita pode ser uma causa genuína de qualquer coisa.
A dinâmica de Leibniz é concebida como um desafio direto ao ocasionalismo; em vez de corpos extensos inertes deslocados por um Deus que seria a única fonte de atividade genuína no mundo, Leibniz postula corpos verdadeiramente ativos, corpos que são a fonte de sua própria atividade, corpos que, em suma, incorporam genuinamente forças.
Leibniz oferece diversos argumentos para essa conclusão[76]. Um deles foi discutido na seção 3.1, em conexão com a refutação da concepção cartesiana do corpo como extensão. Ali, Leibniz argumenta que Deus concedeu forças aos corpos, ou seja, a capacidade de agir; pois, de outro modo, ele teria que executar constantemente seus próprios comandos. De modo mais geral, Leibniz sustenta que o ocasionalismo implica um milagre perpétuo, na medida em que, segundo essa doutrina, Deus precisaria realizar continuamente suas próprias ordens. Leibniz escreve a Arnauld:
Propriamente falando, Deus realiza um milagre quando faz algo que ultrapassa as forças que ele concedeu às criaturas e conserva nelas (…). Assim, devemos dizer que, se a continuação do movimento excede a força dos corpos, então a continuidade desse movimento é um verdadeiro milagre. Mas creio que a substância corpórea possui a capacidade [força] de continuar suas transformações de acordo com as leis que Deus colocou em sua natureza e que nela conserva. (Carta a Arnauld, 30 de abril de 1687, G II 93: AG 83)
Leibniz também argumenta que atribuir força e atividade aos corpos é necessário para que eles existam como entes genuínos, independentes de Deus. Assim, ele escreve na oitava seção de Sobre a Própria Natureza (1698):
“A própria substância das coisas consiste em uma força para agir e para ser afetada. Daí decorre que as coisas persistentes não podem ser produzidas se nenhuma força duradoura no tempo puder ser impressa nelas pelo poder divino. Se assim fosse, seguir-se-ia que nenhuma substância criada, ou nenhuma alma permaneceria numericamente a mesma e, assim, nada seria conservado por Deus, e, consequentemente, tudo não passaria de certas modificações evanescentes ou instáveis, e de fantasmas, por assim dizer, de uma única substância divina permanente. Ou, o que dá no mesmo, Deus seria a própria natureza ou substância de todas as coisas — uma doutrina de má reputação, que um escritor recente, sutil sem dúvida, embora profano, ou introduziu no mundo ou a reviveu.” (G IV 508–9: AG 159–60; cf. G IV 396–97: AG 253–54; G IV 567–68: L 583; SD parte I, par. 12, GM 242: AG 125)
O argumento é obscuro, sem dúvida. Mas Leibniz está tentando demonstrar aqui que, a menos que sigamos seu afastamento do ocasionalismo e adotemos a concepção dinâmica do corpo que ele defende, acabaremos na posição de Spinoza, onde tudo existe apenas como um modo de Deus — uma doutrina que Leibniz considerava tanto falsa quanto perigosa. Certamente, seria um exagero dizer que a física de Leibniz constitui uma refutação “científica” da doutrina do ocasionalismo; embora esteja conectada com sua dinâmica, os argumentos contra o ocasionalismo possuem um caráter nitidamente metafísico. No entanto, é verdade que o mundo dinâmico das forças primitivas e derivadas está profundamente entrelaçado com um aspecto central do programa metafísico de Leibniz: o de devolver ao mundo a atividade que os cartesianos haviam indevidamente suprimido.
4. FÍSICA MECÂNICA: ESPAÇO, MOVIMENTO E AS LEIS DO MOVIMENTO
Na seção anterior, examinamos a concepção leibniziana de força, aquilo que fundamenta para Leibniz a realidade do mundo. Agora, devemos nos voltar à física propriamente dita, isto é, à abordagem mecanicista do mundo dos corpos extensos movendo-se no espaço, abordagem que Leibniz fundamenta em sua dinâmica. Iniciaremos com uma exposição sobre espaço e movimento — as noções básicas da física mecanicista — antes de abordar a concepção leibniziana das leis do movimento.
4.1 ESPAÇO E VÁCUO
A questão sobre o que é o espaço e se um vácuo ou espaço vazio é possível é uma das principais controversas da ciência na época moderna. Uma história completa dessas noções, tal como foram tratadas por pensadores anteriores a Leibniz, é inviável no contexto deste ensaio[77]. Resumidamente, ao ingressarmos no século XVII, encontramos pelo menos duas correntes de pensamento importantes.
Para Aristóteles e seus seguidores, a noção de espaço independente do corpo é incoerente; embora certas concessões teológicas tenham sido feitas para acomodar a liberdade divina — a capacidade de Deus de mover o mundo inteiro, caso assim desejasse –, o fundamental era o corpo, e o espaço era apenas uma abstração a partir daquilo que realmente possuía ser. Para os antigos atomistas, cujas doutrinas estavam sendo ativamente revividas no início do século XVII, e para os críticos do aristotelismo, o espaço era algo de certa forma real, algo que possuía existência independente do corpo e que poderia existir sem corpo[78].
Esse mesmo debate prosseguiu no século XVII. Descartes e seus seguidores sustentaram essencialmente a linha aristotélica, negando a realidade independente do espaço e a possibilidade do vácuo[79]. Outros, incluindo o atomista Pierre Gassendi e Blaise Pascal, fortalecidos pelo que interpretavam como novas evidências experimentais, defenderam um espaço que poderia existir independentemente do corpo, tanto vazio quanto preenchido[80].
O mais formidável defensor dessa última visão no século XVII foi Sir Isaac Newton. Newton argumentou em favor de uma concepção de espaço radicalmente independente dos corpos que pudesse ou não conter. Embora reconhecesse que, normalmente, compreendemos o espaço em termos dos corpos sensíveis que o ocupam, em seus Principia de 1687 ele argumentou que a física requer aquilo que chamou de espaço absoluto:
O espaço absoluto, por sua própria natureza, sem relação com qualquer coisa externa, permanece sempre idêntico e imóvel. O espaço relativo é alguma dimensão ou medida móvel dos espaços absolutos, que nossos sentidos determinam pela posição em relação aos corpos e que vulgarmente é tomado como espaço imóvel. (…) Como as partes do [espaço absoluto] não podem ser vistas nem distinguidas umas das outras por nossos sentidos, em seu lugar utilizamos medidas sensíveis delas (…). Mas, em investigações filosóficas, devemos abstrair-nos de nossos sentidos e considerar as coisas em si mesmas, distintas daquilo que são apenas suas medidas sensíveis[81].
Na segunda edição de 1713, Newton chegou ao ponto de identificar esse espaço absoluto com o próprio Deus:
“Ele perdura para sempre e está presente em toda parte, e, por existir sempre e em todos os lugares, constitui a duração e o espaço (…). Ele é onipresente não apenas virtualmente, mas também substancialmente, pois a virtude não pode subsistir sem substância. Nele todas as coisas estão contidas e movem-se[82].”
Para Newton, portanto, o espaço é algo absolutamente real, e algo completamente independente dos corpos que nele existem[83].
Leibniz interessou-se pela noção de espaço desde seus primeiros escritos. Embora em alguns de seus textos iniciais haja uma forte sugestão de que ele concebia o espaço como algo distinto do corpo[84], em seus escritos maduros ele nega com clareza a realidade independente do espaço, especialmente em oposição à forma específica que essa doutrina assumiu nas obras de Newton. Em um trecho característico de 1695 — o mesmo ano da Specimen Dynamicum –, em resposta às objeções de Foucher ao Novo Sistema, Leibniz sustenta:
“A extensão ou o espaço, assim como as superfícies, linhas e pontos que nele se pode conceber, são apenas relações de ordem ou ordens de coexistência, tanto para a coisa existente em ato quanto para a coisa possível que se pode colocar em seu lugar.” (G IV 491: AG 146)
O autor [isto é, Clarke] sustenta que o espaço não depende da situação dos corpos. Respondo: é verdade, ele não depende de tal ou tal situação dos corpos, mas é essa ordem que torna os corpos capazes de serem situados e pela qual eles possuem uma posição entre si quando coexistem, assim como o tempo é essa ordem com respeito à sua posição sucessiva. Mas, se não houvesse criaturas, o espaço e o tempo existiriam apenas nas ideias de Deus. (Quarta carta a Clarke, par. 41, G VII 376–77: AG 331)[85]
Assim como ocorre com a extensão, discutida na seção 3.1, o espaço é apenas a ordem das coisas e pressupõe a existência das coisas a serem ordenadas — corpos e, em última instância, substâncias, que são as únicas realidades em sentido próprio para Leibniz. Por isso, Leibniz sustenta que o espaço não existiria se não houvesse corpos e as substâncias que os fundamentam; como escreveu em um ensaio sem título de 1689:
“O espaço sem matéria é algo imaginário.” (C 590: AG 91)
Além do argumento geral contra Newton, baseado na própria definição de espaço, Leibniz oferece outro tipo de argumento. Respondendo a Clarke, ele escreve:
“Digo, então, que se o espaço fosse um ente absoluto, algo ocorreria para o qual seria impossível que houvesse uma razão suficiente — o que contraria meu axioma. E posso prová-lo da seguinte maneira. O espaço é algo absolutamente uniforme e, na ausência das coisas nele situadas, um ponto do espaço não difere absolutamente em nada de outro ponto do espaço. Mas disso se segue (supondo que o espaço seja algo em si mesmo, além da ordem dos corpos entre si) que seria impossível haver uma razão pela qual Deus, mantendo as mesmas situações dos corpos entre si, os teria colocado no espaço de uma determinada maneira e não de outra — por que tudo não foi disposto exatamente ao contrário, por exemplo, trocando o leste pelo oeste. Mas, se o espaço não for nada além dessa ordem ou relação e nada for sem os corpos além da possibilidade de situá-los, então esses dois estados — um tal como é agora e outro suposto como seu inverso completo — não difeririam em absoluto um do outro. Sua diferença, portanto, só pode ser encontrada em nossa suposição quimérica da realidade do espaço em si.” (Terceira carta a Clarke, par. 5, G VII 363–64: AG 325)
Se Newton estiver certo, argumenta Leibniz, então há uma diferença real entre o nosso mundo, tal como é, e outro mundo no qual as relações entre as coisas são as mesmas, mas, por exemplo, leste e oeste estão invertidos. No entanto, como o espaço absoluto de Newton é completamente uniforme, e uma região é intercambiável com qualquer outra, não pode haver razão para que Deus prefira uma configuração em detrimento de outra. Assim, se o espaço absoluto existe, como supõe Newton, então, ao criar um mundo no espaço, Deus precisaria violar o Princípio da Razão Suficiente. A conclusão de Leibniz é que tal espaço, portanto, não pode existir.
Leibniz complementa esse argumento com outro. Suponha que Deus invertesse tudo no universo, como ele poderia fazer caso Newton estivesse certo. Teríamos, então, um novo estado do universo, distinto do original, mas completamente indistinguível dele. Tal ação da parte de Deus, seria se reduziria a isso: “uma mudança sem qualquer mudança”, e Deus teria agido sem realmente fazer algo — algo que Leibniz considera absurdo. (Quarta carta a Clarke, par. 13, G VII 373: AG 328–29)[86]
Embora concorde com Descartes e a tradição cartesiana de que o espaço não é algo independente dos corpos que o ocupam, Leibniz assume uma posição sobre o vácuo que difere da dos cartesianos. Para Descartes, naturalmente, a essência do corpo é a extensão. E, segundo seu raciocínio, uma vez que não pode haver um acidente sem um sujeito no qual ele possa inerir, onde há extensão, deve haver também uma substância extensa; ou seja, um corpo. Disso decorre que, onde não há corpos, não pode haver espaço. Além disso, conclui que não pode haver vácuo, ou seja, não pode haver uma região de extensão desprovida de corpo[87].
Por vezes, Leibniz expressa opiniões sobre o vácuo muito semelhantes às de Descartes. Leibniz pergunta a Clarke, por exemplo:
“Se o espaço é uma propriedade ou atributo, ele deve ser propriedade de alguma substância. Mas a que substância pertencerá esse espaço limitado, tomado como um afeto ou propriedade por aqueles com quem argumento, e que supõem existir entre dois corpos?” (Quarta carta a Clarke, par. 8, G VII 372: AG 328; cf. Quinta carta, par. 48, G VII 402: AG 339)[88]
Mas, em outros momentos, Leibniz adota uma visão diferente. Pois, como foi discutido acima na seção 3.1, a extensão, para Leibniz, deve ser a extensão de alguma qualidade, ou do contrário, não pode constituir a essência do corpo ou de qualquer outra coisa. Como a extensão é uma noção relativa e pressupõe algo que se estende, Leibniz admite a possibilidade de conceber uma extensão que não corresponda à extensão da força que constitui o corpo[89]. No entanto, embora um espaço extenso sem corpo seja, assim, possível para Leibniz de um modo que não o é para Descartes, essa possibilidade suscita outros problemas. Um deles é formulado de maneira concisa no ensaio Primeiras Verdades, de 1689:
“Não há vácuo. Pois as diferentes partes do espaço vazio seriam então perfeitamente semelhantes e mutuamente congruentes, não podendo ser distinguidas umas das outras. Assim, elas difeririam apenas em número, o que é absurdo.” (C 521–22: AG 33)[90]
Dessa forma, Leibniz argumenta que o Princípio da Identidade dos Indiscerníveis exclui a possibilidade do espaço vazio. Em outro momento, ele recorre ao Princípio da Plenitude. Escrevendo a Johann Bernoulli em 13/23 de janeiro de 1699, ele argumenta:
“Não digo que o vácuo, o átomo e outras coisas desse tipo sejam impossíveis, mas apenas que não estão de acordo com a sabedoria divina. (…) Entre uma infinidade de possíveis, Deus escolheu, de acordo com sua sabedoria, aquilo que é o mais apropriado. Contudo, é evidente que o vácuo (…) deixa lugares estéreis e incultos, lugares onde algo mais poderia ter sido produzido, sem prejuízo do restante. Que tais lugares permaneçam contradiz a sabedoria.” (GM III 565: AG 170–71)[91]
Por fim, Leibniz argumenta, nas cartas a Clarke, que, se houvesse espaços vazios no mundo, haveria uma violação do Princípio da Razão Suficiente, seu princípio fundamental. Pois, segundo Leibniz,
“é impossível que haja qualquer princípio que determine qual deve ser a proporção de matéria, dentre todos os graus possíveis desde um plenum até um vácuo, ou de um vácuo a um plenum.” (Quarta carta a Clarke, G VII 378: AG 332)
Para o Deus de Leibniz, deve ser tudo ou nada e, como há algo, deve ser tudo.
4.2 MOVIMENTO
“Se o movimento (…) é algo real”, escreveu Leibniz a Huygens em junho de 1694, “ele deve ter um sujeito”. (Carta a Huygens, 12/22 de junho de 1694, GM II 184: AG 308)
Mas, como Leibniz já havia explicado a Arnauld alguns anos antes, é precisamente isso que falta ao movimento tal como é comumente entendido:
O movimento, na medida em que é apenas uma modificação da extensão e uma mudança de proximidade [isto é, como definido por Descartes], contém algo imaginário, de modo que não se sabe como determinar a qual dos sujeitos em mudança ele pertence. (Carta a Arnauld, 30 de abril de 1687, G II 98: AG 86)
O problema que Leibniz aponta aqui é duplo. Um dos problemas decorre simplesmente da visão amplamente aceita de que o movimento, considerado em si mesmo, é apenas a mudança nas relações espaciais entre vários corpos. Contudo, se o movimento for estritamente falando, apenas isso, então, quando os corpos A e B se movem um em relação ao outro, podemos considerar livremente A em repouso e B em movimento, ou B em repouso e A em movimento.
“O movimento, com todo o rigor matemático, não é senão uma mudança nas posições dos corpos entre si”, escreveu Leibniz em um ensaio sem título de 1689, “portanto, o movimento não é algo absoluto, mas consiste em uma relação.” (C 590: AG 91)
Essa observação, evidentemente, não é exclusiva de Leibniz, nem particularmente profunda. No entanto, Leibniz sustenta também uma visão mais profunda e mais característica sobre a questão. Nesse primeiro sentido, o movimento pode ser relativo e, ainda assim, pode-se argumentar que é possível realizar um experimento para determinar se é realmente A ou B que está em movimento. O experimento do balde de Newton é o argumento mais célebre desse tipo. Nos Principia, Newton argumenta que a forma como a água sobe pelas bordas de um balde em rotação demonstra que é o balde que se move em um universo em repouso, e não o universo que gira ao redor de um balde imóvel[92]. Com isso, Newton distingue o movimento relativo — definido em relação a um ponto de repouso arbitrariamente escolhido — do movimento absoluto — definido em relação ao espaço absoluto[93].
Leibniz conhecia a tese de Newton e, assim como rejeitou o espaço absoluto, rejeitou também o movimento absoluto de Newton. Ele escreveu a Huygens:
O Sr. Newton reconheceu a equivalência das hipóteses no caso dos movimentos retilíneos. Mas, no que diz respeito aos movimentos circulares, ele acredita que o esforço que os corpos em rotação fazem para se afastar do centro ou do eixo de circulação nos permite conhecer seu movimento absoluto. No entanto, tenho razões que me levam a crer que nada rompe a lei geral da equivalência. (GM II 184–85: AG 308)[94]
Os argumentos de Leibniz são difíceis e obscuros[95]. No entanto, a ideia central consiste no seguinte: todos concordam com a equivalência das hipóteses no caso do movimento retilíneo; ou seja, não podemos realizar nenhum experimento que nos permita determinar se estamos em movimento retilíneo uniforme ou em repouso.
Mas Leibniz parece ter raciocinado que, no mundo das bolas de bilhar da filosofia mecanicista, todo movimento curvilíneo e acelerado é composto de segmentos (muito curtos) de movimento retilíneo uniforme, cuja direção ou velocidade é alterada por colisão com outros corpos. E, na medida em que ele acreditava que não podemos distinguir entre um corpo A movendo-se uniformemente e colidindo com um corpo B em repouso, e um corpo B em movimento colidindo com um corpo A em repouso, parece ter concluído que, ao menos no mundo mecânico real, a equivalência das hipóteses deveria valer tanto para movimentos curvilíneos e acelerados quanto para movimentos retilíneos uniformes.
Assim, Leibniz acreditava poder demonstrar que nenhum experimento poderia permitir a distinção entre um referencial e outro, estabelecendo que um é o verdadeiro referencial de repouso e o outro não. Essa é a chamada doutrina da equivalência das hipóteses, formulada (e provada) como a décima nona proposição da segunda parte da terceira sessão da Dynamica (GM VI 507–8)[96]. Dessa forma, segundo a doutrina de Leibniz, nem mesmo um anjo poderia discernir se Copérnico está certo ao afirmar que a Terra se move, ou se Ptolomeu e Tycho estão corretos ao preferir o Sol em movimento. Em um texto interessante, escrito em 1689 — durante seu ano na Itália, onde a memória da condenação de Galileu ainda estava muito viva –, Leibniz escreveu:
“Quer os corpos se movam livremente, quer colidam entre si, há uma lei extraordinária na natureza: nenhum olho, onde quer que esteja situado na matéria, possui um critério seguro para determinar, a partir dos fenômenos, onde há movimento, quão grande ele é e de que tipo, ou mesmo se Deus move tudo ao seu redor, ou se move esse próprio olho.” (C 590: AG 91)[97]
Nada no mundo da física, tomado estritamente — ou seja, nada no mundo mecanicista de tamanho, forma e movimento — pode determinar, mathematico rigore, se um dado corpo está em movimento ou em repouso. Assim, Leibniz argumenta que o movimento, assim entendido, carece de um sujeito determinado e, não tendo um sujeito, não pode realmente ser um constituinte do mundo.
Por trás dessa visão, evidentemente, há, pelo menos, uma ou duas premissas metafísicas. Para Leibniz, é absolutamente ininteligível a existência de uma propriedade que não seja realmente a propriedade de alguma coisa ou uma propriedade que seja irredutivelmente relacional. O significado exato dessa afirmação não é inteiramente claro[98]. No entanto, Leibniz conclui que, para que o movimento seja real, ele deve estar fundamentado em algo que não seja uma mera relação, mas sim em uma propriedade real de coisas reais. Embora Leibniz tenha tentado várias soluções[99], a que ele finalmente adotou foi a força:
“Não se pode dizer (…) realmente a qual sujeito pertence o movimento; assim, nada há de real no movimento, exceto a força e a virtude [a potência] com que as coisas são dotadas.”
(VE II 294; cf. Discurso de Metafísica, par. 18, G IV 444: AG 51; Specimen Dynamicum, parte II, par. 21, GM VI 247–48: AG 130–1; G IV 369: L 393; G IV 400: AG 256; G IV 523: L 496; VE III 481, 488, 495)
A ontologia da força, discutida na terceira seção, fornece a Leibniz um meio de fundamentar a realidade do movimento. Embora o movimento ou o repouso, tomados em sentido estrito — ou seja, a mudança de posição ou a ausência dela –, não possam ser atribuídos a corpos individuais de maneira não arbitrária, Leibniz afirma que a força, causa do movimento que observamos, é algo real e pode, com efeito, ser atribuída a um corpo ou a outro. Como Leibniz escreveu no Discurso de Metafísica (1686):
“O movimento (…) não é algo inteiramente real. (…) Mas a força, ou a causa próxima dessas mudanças, é algo mais real, e há razões suficientes para atribuí-la a um corpo em vez de outro. Além disso, é apenas dessa maneira que podemos saber a qual corpo pertence o movimento.” (Discurso de Metafísica, par. 18, G IV 444: AG 51)
Embora o movimento, entendido como mudança local, seja, estritamente falando, relativo, Leibniz parece acreditar que o apelo a algo além do mundo da extensão e de suas mudanças — isto é, à força — pode romper essa relatividade e permitir que falemos inteligivelmente sobre a causa do movimento, como pertencendo a um corpo e não a outro. Assim fundamentado, o movimento pode ingressar no domínio da física.
A concepção de Leibniz sobre o movimento, contudo, levanta uma questão curiosa.
O movimento é completamente relativo e, segundo a doutrina da equivalência das hipóteses, não há marcas físicas que permitam distinguir o movimento real do aparente; todo referencial é tão válido quanto qualquer outro, ao menos do ponto de vista da física propriamente dita; ou seja, se nos limitarmos à consideração dos corpos extensos em movimento[100]. Contudo, Leibniz argumenta que subjacente ao movimento, deve haver força, a causa do movimento; algo que vai além do mundo mecanicista da extensão e de seus modos, algo que realmente pertence a um corpo e não a outro. Nesse sentido, há um referencial correto para a determinação do movimento: aquele no qual os movimentos observados são os efeitos das forças reais subjacentes, que são suas causas. No entanto, tal referencial jamais poderia ser identificado. O movimento possui, de certo modo, um fundamento, mas um fundamento que não faz qualquer diferença real (ou aparente) no mundo físico; dessa maneira, a teoria do movimento pareceria flutuar livremente, desvinculada de seus fundamentos na noção de força[101].
O fato de não podermos vincular os movimentos observados a determinadas forças subjacentes não deveria, per se, minar o projeto de Leibniz; creio que Leibniz não pretendia que a força fundamentasse a física de maneira tão crua e direta. O que a força explica é justamente o fato de que a atribuição do movimento ao mundo faz sentido. Para Leibniz, todas as propriedades reais das coisas no mundo residem, em última instância, em indivíduos genuínos. Se isso for verdade, torna-se evidente por que o mero movimento — a simples mudança de local — não é suficiente. Para que o movimento seja inteligível, deve haver algo que não seja meramente relativo, algo que constitua uma propriedade absoluta e não arbitrária de um ente individual, algo que seja a causa e o fundamento do movimento. É aqui que a noção de força entra em cena. O estado presente do mundo deve ter um fundamento real, baseado em alguma configuração de forças; algo deve estar presente, ainda que Leibniz não possa determinar com precisão o quê. Do ponto de vista da física, não importa qual, entre as inúmeras configurações possíveis de força, realmente existe no mundo; o essencial é que alguma configuração exista.
O conceito de força não apenas fundamenta a realidade do movimento, mas também suas leis. Embora não possamos determinar com precisão onde se encontram, na natureza, as causas reais do movimento, essas forças desempenham um papel essencial na derivação das leis do movimento de Leibniz. É isso que veremos na próxima seção.
4.3 AS LEIS DO MOVIMENTO
Ao discutir as concepções de Leibniz sobre as leis do movimento, será útil começar pelo ponto onde o próprio Leibniz iniciou: a crítica aos outros, especialmente a Descartes.
Comecemos pelo princípio cartesiano de conservação, essencial à física de Descartes. Segundo ele, Deus sustenta o universo a cada instante e, ao fazê-lo, garante a conservação da quantidade total de movimento no mundo, definida pelo produto do tamanho pela velocidade de cada corpo existente[102]. Embora tenha tido seus percalços, esse princípio era amplamente aceito nas décadas de 1670, 1680 e 1690. Foi esse princípio cartesiano da conservação que Leibniz precisou confrontar — e refutar — no final da década de 1670, ao formular sua própria física, e foi a crítica publicada por Leibniz ao princípio cartesiano de conservação, no BD de 1686, que gerou uma das controvérsias públicas mais visíveis de sua carreira, quando cartesianos surgiram de todos os lados para defender aquilo que muitos consideravam o fundamento de sua física.
Leibniz não foi o primeiro a atacar o princípio da conservação de Descartes, e os detalhes específicos de seus argumentos devem muito a outros pensadores, especialmente a Huygens[103]. No entanto, a intensidade das trocas que se seguiram à publicação do BD sugere que a crítica de Leibniz ainda era uma novidade para muitos. Essa controvérsia, conhecida como a controvérsia da vis viva (força viva), resultou em inúmeros refinamentos e variantes do argumento original, formulado no final da década de 1670 e publicado em 1686[104]. Mas, deixando de lado os detalhes, os argumentos desenvolvidos por Leibniz nesse contexto podem ser divididos em dois grupos: a priori e a posteriori.
Comecemos pelos argumentos a posteriori, que provavelmente remontam a 1676. Esse grupo de argumentos compartilha uma estratégia comum e um conjunto de pressupostos para chegar a uma série de conclusões interconectadas. A ideia central desses argumentos é que os corpos em movimento possuem a capacidade de realizar trabalho em virtude de estarem em movimento; esse é o efeito sensível daquilo que Leibniz veio a chamar de força viva (vis viva). Essa capacidade de trabalho pode ser comparada entre diferentes corpos ao se comparar o trabalho efetivamente realizado no consumo dessa força. O que Leibniz escolhe observar é a altura até a qual um corpo em movimento uniforme horizontal poderia se elevar quando esse movimento horizontal é convertido em movimento vertical e consumido na ascensão. Leibniz argumenta [105]que a altura até a qual um corpo com uma determinada velocidade pode se elevar a partir do movimento horizontal, é uma medida da força que ele possui em virtude desse movimento.
É evidente que, pelo princípio da equivalência das hipóteses (ver seção 4.2), não podemos determinar onde, no mundo, se encontra a força real — se pertence ao corpo que se move sobre uma superfície horizontal ou à própria superfície. No entanto, pelo mesmo princípio, somos igualmente livres para atribuir a força ao corpo em movimento horizontal, caso assim escolhamos, sem que isso altere as leis da física. Certos pressupostos, então, permitem a Leibniz extrair suas conclusões. O mais fundamental é o princípio da igualdade entre causa e efeito, o princípio segundo o qual “todo efeito possui a mesma potência que sua causa, de modo que não se pode obter um movimento perpétuo sem violar a ordem das coisas por meio de um aumento da potência do efeito além daquele de sua causa” (Dynamica, Specimen Praeliminare, GM VI 28; AG 106)[106]. Esse princípio metafísico, cuja importância Leibniz parece ter percebido pela primeira vez em 1676, no momento em que começou a se afastar de seu sistema inicial, é central para sua derivação das leis do movimento. Nos argumentos a posteriori que estamos examinando, ele é utilizado para estabelecer que a força — a capacidade de trabalho — deve ser conservada em um sistema fechado e que a velocidade adquirida por um corpo pesado em queda livre ao cair uma distância d é suficiente para elevá-lo novamente à mesma distância d.
Além do princípio da igualdade entre causa e efeito, nos argumentos a posteriori, Leibniz assume a lei galileana da queda livre, segundo a qual a velocidade com que um corpo pesado cai é proporcional à raiz quadrada da distância percorrida, ou seja, a distância percorrida é proporcional ao quadrado da velocidade adquirida durante a queda livre. Esse pressuposto é, evidentemente, a posteriori.
Esses pressupostos permitem a Leibniz estabelecer que: (1) a força (entendida como a capacidade de realizar trabalho) não é a mesma coisa que a quantidade de movimento dos cartesianos; (2) a quantidade de movimento dos cartesianos não é conservada no universo; e (3) o que é conservado é mv2..
A diferença entre força e quantidade de movimento decorre diretamente dos pressupostos assumidos por Leibniz. Consideremos dois corpos: A, de tamanho unitário, e B, de tamanho quádruplo. Leibniz argumenta que é necessário exatamente o mesmo trabalho para elevar A a uma altura de quatro pés quanto para elevar B a uma altura de um pé, pois podemos considerar B como composto por quatro corpos menores, idênticos a A, cada um sendo elevado por um pé (ver figura 1). Assim, quando A e B caem dessas respectivas alturas e suas velocidades são convertidas em movimento horizontal, ambos devem possuir exatamente a mesma força — ou seja, a mesma capacidade de realizar trabalho. Pelo princípio da igualdade entre causa e efeito, a velocidade que A e B adquirem ao cair é suficiente para elevá-los novamente às suas alturas originais, assumindo-se que o trabalho necessário para elevar A a quatro pés seja igual ao necessário para elevar B a um. (INSERIR IMAGEM).
Leibniz argumenta que, ao cair, A adquirirá dois graus de velocidade, conforme a lei galileana da queda livre, enquanto B adquirirá apenas um. Se assim for, então, após a queda, A terá duas unidades de quantidade de movimento, enquanto B terá quatro. Como A e B possuem a mesma capacidade de trabalho (força), segue-se que força e quantidade de movimento não podem ser a mesma coisa[107]. Pois, como mencionado anteriormente, do princípio de igualdade entre causa e efeito decorre diretamente que a força, entendida como a capacidade de trabalho, deve ser conservada no universo como um todo[108]. Assim, a não conservação da quantidade de movimento cartesiana resulta diretamente da conservação da força, juntamente com a distinção entre força e quantidade de movimento[109]. No entanto, esse resultado também pode ser derivado diretamente do princípio da igualdade entre causa e efeito.
Deste modo, Leibniz pode demonstrar que, se a quantidade de movimento cartesiana fosse conservada, seria possível construir uma máquina de movimento perpétuo — uma máquina que criaria a capacidade de trabalho a partir do nada –, o que violaria evidentemente o princípio da igualdade entre causa e efeito[110].
Que mv2 seja a medida correta da força e, portanto, que mv2 é o que se conserva no mundo, também pode ser demonstrado por meio de uma variação desse argumento. Consideremos os corpos A e B, como mencionado acima. É evidente que, nesse caso, embora A e B possuam quantidades de movimento diferentes, o produto de seu tamanho pelo quadrado de suas velocidades será igual. Essa conclusão pode ser facilmente generalizada para demonstrar que, sempre que dois corpos possuírem a mesma força, o produto do tamanho pelo quadrado da velocidade será o mesmo. Se essa igualdade for violada, a capacidade de trabalho será criada ou perdida, violando assim o princípio da igualdade entre causa e efeito (ver, por exemplo, SD, parte I, §16, GM VI 244–45; AG 128). Da mesma forma, pode-se demonstrar que uma máquina de movimento perpétuo sempre poderá ser construída, a menos que mv2 seja conservado.
Mas, por mais impressionante que seja o argumento a posteriori, ele possui uma imperfeição óbvia. Na medida em que depende do comportamento dos corpos pesados em queda livre, ele se baseia em certas características contingentes do nosso mundo, que nada têm a ver com as leis fundamentais da física. Esse tipo de crítica é particularmente problemático para Leibniz e muitos de seus contemporâneos, que acreditavam que a gravidade derivava da configuração particular dos vórtices etéreos que circundam a Terra; caso os vórtices fossem diferentes, a lei da queda livre poderia ser também completamente diferente, o que, ao que parece, resultaria em uma quantidade conservada distinta[111].
Em resposta a essa dificuldade, Leibniz tentou formular uma demonstração a priori de sua lei de conservação. Essa demonstração a priori aparece pela primeira vez na Dynamica de 1689–1690 e em sua correspondência a partir de 1696 (ver Dynamica, Specimen Praeliminare, GM VI 291–92; AG 110–111; Dynamica GM VI 345–67; carta a De Volder, 24 de março / 3 de abril de 1699, G II 172–74; carta a Bayle, 1699–1701, G III 59–60; SD, parte I, §15, GM VI 243–44; AG 127). Leibniz apresenta uma exposição particularmente simples do argumento em uma carta a Bayle do final da década de 1690:
No movimento uniforme de um único corpo, a ação de percorrer dois lugares em duas horas é o dobro da ação de percorrer um lugar em uma hora, uma vez que a primeira ação contém a segunda exatamente duas vezes. A ação de percorrer um lugar em uma hora é o dobro da ação de percorrer um lugar em duas horas; ou melhor, ações que produzem o mesmo efeito são proporcionais às suas velocidades. E, assim, a ação de percorrer dois lugares em duas horas é quatro vezes a ação de percorrer um lugar em duas horas. Essa demonstração mostra que um corpo em movimento que recebe um movimento duplo ou triplo, de modo a ser capaz de realizar um efeito duas ou três vezes maior em um dado tempo, recebe uma ação quatro ou nove vezes maior. Portanto, as ações são proporcionais ao quadrado das velocidades. Assim, verifica-se, de modo bastante feliz, que isso está de acordo com minha medida de força, derivada tanto da experiência quanto do princípio da evitação do movimento mecânico perpétuo. (G III 60)
Embora não seja de modo algum evidente que a “ação”, tal como entendida neste argumento, seja equivalente à força, conforme definida nos argumentos a posteriori — ou seja, como capacidade de trabalho –, Leibniz claramente identifica as duas[112] e considera que esse argumento a priori estabelece a mesma conclusão que alguns dos argumentos a posteriori: que a força é medida por mv2, e não pela quantidade de movimento cartesiana. Uma vez estabelecido isso, a conservação de mv2 decorre diretamente do princípio da igualdade entre causa e efeito, tal como ocorreu nos argumentos a posteriori. Apesar de sua aparente simplicidade, esse argumento esconde uma rede de complexidades[113]. No entanto, é evidente por que tal estratégia seria atraente para Leibniz.
O ataque mais visível de Leibniz à física cartesiana dizia respeito ao princípio da conservação. No entanto, ele também se opôs à explicação de Descartes sobre o impacto. Desde que Descartes formulou suas regras, muitos avanços foram feitos na compreensão do impacto e, ao contrário do princípio da conservação, apenas um cartesiano cegamente dedicado ainda poderia seguir o mestre nessa questão na época em que Leibniz desenvolvia sua física madura[114]. Dessa forma, a crítica de Leibniz às regras cartesianas do impacto não despertava o mesmo interesse imediato que sua crítica ao princípio da conservação suscitava entre seus contemporâneos[115]. No entanto, sua análise das leis cartesianas do impacto revela outro aspecto interessante de sua própria concepção física.
Em seus Princípios da Filosofia (1644), Descartes formulou uma lei geral do impacto, seguida por sete regras que aplicavam essa lei a casos específicos de impacto direto; ou seja, situações em que dois corpos colidem em linha reta. A lei cartesiana é composta por duas partes. Em primeiro lugar, se um corpo B colidir com outro corpo C que seja “mais forte” do que ele, B retornará com a mesma velocidade que possuía originalmente. No entanto, se B for mais forte que C, B colocará C em movimento, e os dois corpos se moverão de tal forma que a quantidade total de movimento — o produto do tamanho pela velocidade — permaneça a mesma antes e depois da colisão. Para corpos em movimento, a “força” de um corpo é medida por sua quantidade de movimento; quando B está em movimento e C está em repouso, a “força” de C na colisão com B é dada pelo produto do tamanho de C pela velocidade de B[116].
Uma das críticas de Leibniz a essa suposta lei do impacto decorre diretamente de sua contestação ao princípio da conservação. Anteriormente, discutimos a afirmação de Descartes de que a quantidade total de movimento no mundo como um todo é conservada. Entretanto, Descartes sustentava que o princípio da conservação também se mantinha nas colisões; pois, segundo sua lei do impacto, as velocidades finais de dois corpos em colisão são determinadas de modo que a quantidade total de movimento no sistema permaneça a mesma antes e depois do impacto.
Leibniz encontrou grande facilidade em utilizar os mesmos tipos de argumentos que empregou contra o princípio geral da conservação para demonstrar que a lei cartesiana do impacto poderia resultar em situações nas quais a capacidade de trabalho dos dois corpos aumentaria ou diminuiria significativamente após a colisão (ver, por exemplo, a carta a Bayle, 9 de janeiro de 1687, G III 45–46; GM VI 123–24)[117]. No entanto, ainda mais interessante é outro tipo de crítica que Leibniz formulou. Um princípio fundamental para a física madura de Leibniz é o princípio da continuidade. Em sua primeira formulação pública, em 1687, em um breve ensaio respondendo ao ataque de Malebranche ao BD, Leibniz apresenta o princípio da seguinte forma:
Quando as diferenças entre dois casos em uma determinada série, ou entre aquilo que é pressuposto, podem ser reduzidas até se tornarem menores do que qualquer quantidade dada, a diferença correspondente no que se busca, ou em seus resultados, deve necessariamente também ser reduzida ou tornar-se menor do que qualquer quantidade dada. Ou, para expressá-lo de forma mais comum: quando dois casos ou dados se aproximam continuamente, de modo que, por fim, um se funde no outro, é necessário que suas consequências ou resultados (ou o desconhecido) também o façam. (Carta do Sr. Leibniz…, G III 52; L 351)[118].
Ou, para expressá-lo de maneira ainda mais simples: “nenhuma mudança ocorre por um salto” (SD, parte II, §3, GM VI 248; AG 131).
Mais adiante, examinaremos as implicações desse princípio para a visão leibniziana do mundo físico, incluindo seu uso na demonstração de que todos os corpos possuem certo grau de elasticidade. Contudo, Leibniz também o emprega para evidenciar a clara falsidade da lei cartesiana do impacto.
Consideremos dois corpos, B e C, movendo-se com a mesma velocidade em direções opostas sobre uma mesma linha. Suponhamos, primeiro, que B e C sejam iguais (caso 1). Nesse caso, segundo as leis de Descartes, ambos os corpos B e C rebaterão na direção oposta com a mesma velocidade que possuíam originalmente. No entanto, se B for mesmo que minimamente maior que C, então B será “mais forte” que C, e B continuará em seu movimento, enquanto C inverterá sua direção, mantendo sua velocidade original[119].
Leibniz observa, no entanto, que “isso é um salto enorme de um extremo a outro”, o que viola seu princípio da continuidade. Afinal, por menor que seja a diferença entre os tamanhos de B e C, os resultados permanecerão inalterados e radicalmente distintos daqueles obtidos caso ambos os corpos tenham o mesmo tamanho (Carta do Sr. Leibniz…, G III 53; L 352). Em seus comentários de 1692 sobre os Princípios da Filosofia de Descartes, Leibniz aprofunda essa ideia e evidencia as descontinuidades presentes nas regras cartesianas do impacto ao considerar dois corpos de mesmo tamanho e variar a velocidade e a direção de seu movimento (ver G IV 381–84; L 402–3, 412, n. 34)[120].
Dessa forma, Leibniz demonstra que as leis cartesianas do impacto não podem estar corretas. Sua própria explicação sobre o impacto encontra-se na Dynamica, bem como no ensaio, “Essay de Dynamique sur les Loix du Mouvement…” (ED), que provavelmente data do início da década de 1690[121].
A explicação leibniziana do impacto baseia-se em uma série de leis de conservação que, segundo ele, devem ser satisfeitas em qualquer colisão. Juntas, essas leis determinam o resultado do impacto entre quaisquer corpos (elásticos).
Antes de tudo, Leibniz sustenta que a força absoluta total (força viva) em um sistema de corpos é conservada em uma colisão elástica; ou seja, a soma de mv2 entre todos os corpos envolvidos permanece a mesma antes e depois da colisão. Assim, a conservação da força viva não se aplica apenas ao universo como um todo, mas também a qualquer sistema fechado de corpos (elásticos) dentro do universo (ver GM VI 227–28, 440, 488–89)[122].
Deve-se enfatizar que, embora a conservação de mv2 no universo como um todo seja absoluta e sem exceção, Leibniz sustenta que, no impacto, isso só se verifica em colisões perfeitamente elásticas; ou seja, colisões em que nenhum movimento é perdido para as partes menores dos corpos. Consideremos os corpos A e B, com ma representando o tamanho do corpo A e mb o tamanho do corpo B. Se A e B não forem perfeitamente elásticos e, na colisão, parte do movimento for transferida para suas partes menores, pode ocorrer que, após a colisão, a soma mav2 + mby2 seja menor do que a soma max2 + mbz2 devido à força transmitida às partes menores dos dois corpos. Embora tal colisão não resulte, evidentemente, em uma perda de força total no universo, a força não será conservada no movimento dos corpos A e B (ver ED, GM VI 230–31).
Em seguida, vem o que Leibniz chama de conservação da velocidade relativa. Consideremos dois corpos, A e B, movendo-se ao longo de uma linha reta, sendo que o corpo A possui a velocidade v antes da colisão e x depois, enquanto o corpo B possui a velocidade y antes da colisão e z depois[123]. Como estamos lidando com velocidade, e não com rapidez, é essencial lembrar que se trata de uma magnitude vetorial, onde o sinal positivo ou negativo indica a direção do movimento. Leibniz sustenta que, para corpos elásticos em colisão, a seguinte equação deve permanecer válida:
v — y = z — x
O raciocínio de Leibniz aqui parece ser o seguinte. Ao colidirem entre si, corpos perfeitamente elásticos não perdem o que Leibniz chama de força respectiva, isto é, sua capacidade de agir um sobre o outro. Além disso, Leibniz argumenta que essa força respectiva depende apenas da velocidade relativa entre eles; se A se aproxima de B em repouso com velocidade v, do ponto de vista do impacto, isso é equivalente a B se aproximar de A com essa mesma velocidade. Agora, suponha que A e B estejam conectados por meio de uma corda elástica, de modo que possam agir um sobre o outro mesmo quando se movem em direções opostas. Nessa circunstância, os dois corpos podem atuar um sobre o outro tanto ao se aproximarem (por meio do impacto) quanto ao se afastarem (por meio da corda). Aqui, Leibniz argumenta que a força respectiva será a mesma quando as velocidades relativas — seja na aproximação de A e B, seja no afastamento — forem iguais. Assim, Leibniz conclui que, quando A e B colidem elasticamente, suas velocidades relativas devem ser as mesmas antes e depois da colisão, pois, do contrário, sua força respectiva seria diferente antes e depois do impacto[124].
É importante notar que, assim como na conservação da força absoluta, a conservação da velocidade respectiva se restringe a colisões perfeitamente elásticas; quando o movimento pode ser dissipado nas partes menores que compõem A ou B, então a força respectiva pode se perder, e essa equação não será necessariamente satisfeita. Além dessas, Leibniz apresenta uma terceira lei, que ele denomina conservação do progresso comum. De acordo com essa lei, a seguinte equação se aplica a todos os corpos em colisão:
mav + mby = max + mbz
Essa lei, naturalmente, é o que veio a ser chamado de conservação do momento, embora Leibniz nunca tenha utilizado esse termo. A magnitude que aparece nessa lei — o produto do tamanho pela velocidade — deve ser cuidadosamente distinguida da noção cartesiana de quantidade de movimento. Segundo Descartes e seus seguidores, o que se conserva no impacto (e no mundo como um todo) é o produto do tamanho pela rapidez, uma magnitude escalar que não envolve direção.
Embora Descartes se preocupe com o que ocorre com a direcionalidade do movimento no impacto, no entanto, seu princípio de conservação não leva em conta considerações sobre a direcionalidade; um corpo que colide com outro e ricocheteia com a mesma rapidez mantém exatamente a mesma quantidade de movimento antes e depois da colisão[125].
Na física de Leibniz, contudo, o que se conserva não é o produto do tamanho pela rapidez, mas o produto do tamanho pela velocidade, uma magnitude vetorial — ou seja, rapidez acompanhada de direção; a essa magnitude, ele chama de força progressiva ou direcional, para distingui-la da noção cartesiana de quantidade de movimento. Assim, quando um corpo inverte seu movimento após uma colisão, sua força progressiva ou direcional se altera. Leibniz deduz a conservação do progresso comum da seguinte maneira. Ele primeiro argumenta que, em um sistema (fechado) de corpos, nenhuma colisão entre os corpos deve alterar a rapidez ou a direção do centro de gravidade do agregado, conclusão que ele considera resultar da conservação da força viva no universo. E, a partir disso, Leibniz argumenta que, no agregado, a totalidade da força progressiva ou direcional deve permanecer a mesma, independentemente das colisões que ocorram entre os corpos no sistema.
Essa lei, convém observar, vale tanto para colisões elásticas quanto para colisões não elásticas; mesmo que o movimento se dissipe nas partes menores dos corpos maiores, o centro de gravidade do agregado deve continuar com a mesma rapidez e na mesma direção[126].
Leibniz argumenta que essas três leis estão interligadas e demonstram como, a partir de quaisquer duas delas, a terceira pode ser derivada (ver ED, GM VI 228). Além disso, qualquer par dessas leis é suficiente para resolver o problema da colisão entre dois corpos elásticos. No entanto, é a conservação da força absoluta — mv2 no impacto — que Leibniz considera a mais significativa. No início do ED, Leibniz lamenta que muitos, ao reconhecerem a falha do princípio cartesiano de conservação, “tenham se lançado ao outro extremo e já não reconheçam nenhuma conservação de algo absoluto que possa substituir a quantidade de movimento” (ED, GM VI 216).
Porém, Leibniz afirma que, na conservação de mv2, temos a conservação de uma magnitude absoluta, ou seja, uma quantidade que não envolve direção, diferentemente da conservação da velocidade respectiva ou da conservação do progresso comum, que necessariamente envolvem magnitudes vetoriais. Leibniz escreve no ED, imediatamente após a exposição da conservação da força absoluta:
Essa equação possui uma característica fundamental: todas as variações assinaladas, que só podem resultar das diferentes direções das velocidades v, x, z, y, desaparecem, pois todas as letras que expressam essas velocidades aqui são elevadas ao quadrado. Como, − y e + y têm o mesmo quadrado, y2, todas as distinções de direção se tornarm irrelevantes. E é também por isso que essa equação fornece algo absoluto, independente das velocidades respectivas ou do progresso em uma determinada direção. Basta apenas estimarmos as diferentes massas e velocidades, sem levar em conta a direção dessas velocidades. (GM VI 227–28)
Embora Leibniz não seja explícito, suspeito que sua preferência por um princípio de conservação absoluto esteja associado às suas próprias concepções sobre as relações. Pois, como observamos acima na quarta seção, no que diz respeito ao movimento, algo que é meramente relativo não pode ser verdadeiramente real, na medida em que não possui um sujeito. Entretanto, a força absoluta, mv2, é algo que pode ser atribuído a um único corpo; ou seja, trata-se de uma propriedade inerente, pela qual possui a capacidade de trabalho.
Os argumentos de Leibniz em favor das leis do movimento dependem, de uma forma ou de outra, de certos princípios metafísicos, particularmente o princípio da igualdade entre causa e efeito e o princípio da continuidade. Por essa razão, argumenta Leibniz, as leis do movimento são contingentes e manifestam a sabedoria de Deus ao escolher este como o melhor dos mundos possíveis[127]. Leibniz escreve, por exemplo, na Teodiceia:
Descobri […] que as leis do movimento que de fato se encontram na natureza e são verificadas pela experiência não são, na verdade, absolutamente demonstráveis, como seria uma proposição geométrica. Elas não derivam inteiramente do princípio da necessidade, mas do princípio da perfeição e da ordem; ou seja, são um efeito da escolha e da sabedoria de Deus. Posso demonstrar essas leis de diversas maneiras, mas é sempre necessário pressupor algo que não seja absolutamente necessário do ponto de vista geométrico. (Teodiceia, parte I, §345, G VI 319; cf. Discurso, §21, G IV 446–47: AG 53–54)
Mas se as leis do movimento são contingentes, como Leibniz pode estabelecê-las argumentativamente?
Em seus escritos sobre física, Leibniz assume certos princípios metafísicos e desenvolve suas derivações, partindo do pressuposto de que vivemos em um mundo criado por um Deus benevolente e sábio, que impõe princípios ordenativos à sua criação. Essa suposição é ainda reforçada pelo fato de que as leis assim derivadas parecem ser capazes de explicar o que realmente ocorre no mundo dos corpos. Assim, por exemplo, ao discutir com De Volder por que o princípio da igualdade entre causa e efeito deve ser satisfeito em nosso mundo, ele observa que um mundo “no qual a matéria em repouso obedece àquilo que a põe em movimento sem qualquer resistência” é tanto possível quanto concebível, mas, como ele ressalta, “um tal mundo não seria senão puro caos.” Leibniz prossegue:
E assim, duas coisas nas quais sempre me apoio aqui — o sucesso na experiência e o princípio da ordem — fizeram com que eu viesse a perceber, posteriormente, que Deus criou a matéria de tal modo que ela contém uma certa repugnância ao movimento. (Carta a De Volder, 24 de março/3 de abril de 1699, G II 170–71: AG 172)
A experiência e nossa crença de que o mundo não é um caos nos afastam, então, da concepção geométrica das leis do movimento que Leibniz afirma ter sustentado no TMA e no HPN, conduzindo-nos às leis contingentes que ele apresenta em seus escritos posteriores. Dessa maneira, podemos ter uma espécie de demonstração das verdades contingentes que regem nosso mundo mecânico.
Por vezes, Leibniz inverte a direção do argumento, utilizando a adequação empírica das leis físicas derivadas de princípios metafísicos, como evidência da existência de um criador sábio e benevolente que instituiu tais princípios para governar o movimento. Na passagem da Teodiceia citada acima, Leibniz conclui da seguinte maneira:
Essas belas leis são uma prova admirável da existência de um ente inteligente e livre [isto é, Deus], contra o sistema da necessidade absoluta e bruta de Estratão e Spinoza.
(Teodiceia, parte I, §345, G VI 319; cf. Princípios da Natureza e da Graça, §II, G VI 603: AG 211)
A dependência das leis do movimento da escolha divina do melhor dos mundos possíveis e a consequente contingência dessas leis são de suma importância para Leibniz. Por um lado, isso lhe fornece um argumento sólido contra aqueles que, como Spinoza, veem tudo como necessário. Leibniz escreve a Remond:
O senhor tem razão, ao julgar que [minha dinâmica] constitui em grande parte os fundamentos de meu sistema, pois ali se aprende a diferença entre as verdades cuja necessidade é bruta e geométrica e aquelas cuja origem reside na conveniência e nas causas finais.
(Carta a Remond, 22 de junho de 1715, G III 645)
Mas também era importante para Leibniz o fato de que a contingência das leis do movimento incluiam Deus no cerne da filosofia mecânica. Ele escreve, por exemplo, no Tentamen Anagogicum de 1696:
Essa consideração nos fornece o termo médio necessário para satisfazer tanto a verdade quanto a piedade […]: todos os fenômenos naturais poderiam ser explicados mecanicamente se os compreendêssemos bem o suficiente, mas os próprios princípios da mecânica não podem ser explicados geometricamente, pois dependem de princípios mais sublimes, que manifestam a sabedoria do Autor na ordem e perfeição de sua obra. (G VII 272: L 478)
Dessa forma, as leis do movimento nos levam a perceber, de maneira mais geral, a importância de considerar as causas finais na física; o que discutiremos adiante[128].
4.4 ATOMISMO E ELASTICIDADE:
A nova filosofia mecanicista do século XVII estava estreitamente ligada ao ressurgimento do interesse pelo atomismo antigo no final do século XVI e início do século XVII. Embora haja várias figuras importantes associadas a esse ressurgimento, Pierre Gassendi é a mais proeminente. Editor, tradutor e comentarista dos tratados epicuristas preservados por Diógenes Laércio, Gassendi representava uma das principais correntes do pensamento mecanicista moderno[129]. No momento em que Gassendi elaborava seus tomos em defesa de um atomismo atualizado, Descartes desenvolvia uma concepção distinta da filosofia mecanicista.
Para os atomistas, o mundo era composto por um vazio preenchido de átomos; ou seja, pequenas partes de matéria que são perfeitamente rígidas, indivisíveis e indestrutíveis — ao menos por meios naturais. Descartes negava ambos. Para ele, o mundo era composto por matéria infinitamente divisível e, em alguns casos, infinitamente dividida — o que preencheria todo o espaço[130]. Alguns, como Boyle, tentaram deixar de lado esse debate, rejeitando a questão da divisibilidade infinita da matéria ou da existência de um espaço real inteiramente vazio de corpos[131]. No entanto, para a maioria dos que escreveram após Gassendi e Descartes, era necessário fazer uma escolha. (INSERIR IMAGEM)
Embora inicialmente, Leibniz possa ter se alinhado a Gassendi e aos atomistas, em seus escritos maduros ele rejeitou claramente o atomismo — vimos sua recusa do vazio na seção 4.1. No entanto, Leibniz também formulou uma variedade de argumentos contra a existência dos átomos. Em alguns trechos, ele argumenta a partir de seu princípio de que não há duas coisas no mundo que possam ser perfeitamente semelhantes. Embora o argumento não seja inteiramente claro, sua ideia parece ser a de que, se houvesse apenas um único tipo de matéria, e esta fosse sempre perfeitamente rígida, então não poderia haver características físicas que distinguissem partes dela com o mesmo volume (ver, por exemplo, Sobre a Própria Natureza, §13, G IV 514: AG 164; carta a De Voider, 20 de junho de 1703, G II 250: AG 175; Novos Ensaios, Prefácio, A VI.vi: RB 57).
Em notas de outubro de 1690, Leibniz formulou um argumento de natureza distinta, uma espécie de reductio ad absurdum da ideia de átomo. Admitindo que os átomos possam apresentar todas as formas, Leibniz hipotetiza um átomo cúbico, A, e dois átomos em forma de prismas triangulares, B e C, que juntos compõem um cubo D de mesmo volume que A (ver figura 2). Quando B e C se unem para formar D, Leibniz argumenta que D se torna indistinguível de A. Assim, ele conclui que ou A é composto de partes menores, e, portanto, não é um átomo, ou D é um átomo e, consequentemente, não é composto de partes menores, o que contradiz a hipótese inicial[132].
Na correspondência com Clarke, Leibniz sugere que é o Princípio da Razão Suficiente que invalida a hipótese do atomismo, uma vez que não pode haver uma razão para interromper a divisibilidade (ou mesmo a divisão efetiva) da matéria em um ponto específico ao invés de outro (ver quarta carta a Clarke, Pós-escrito, G VII 377–78: AG 332).
De acordo com o princípio da continuidade, nenhuma mudança na natureza ocorre por um salto. Ora, Leibniz argumenta, na parte II do Specimen Dynamicum:
Se imaginarmos que existem átomos, isto é, corpos de rigibilidade máxima e, portanto, inflexíveis, seguir-se-ia uma mudança por um salto, isto é, uma mudança instantânea. Pois, no exato momento da colisão, a direção do movimento se inverteria.
(Specimen Dynamicum, parte II, §3, GM VI 248: AG 132; cf. G IV 398–99: AG 255; Essais de Dynamique, GM VI 229; Dynamica, GM VI 491)
Se os corpos fossem perfeitamente rígidos e não possuíssem qualquer “cedência”, então, ao colidirem entre si, mudariam instantaneamente sua direção e velocidade. Assim, Leibniz argumenta que não pode haver átomos, nem corpos perfeitamente duros e inflexíveis na natureza, sob pena de violação do princípio da continuidade. Esse argumento, segundo Leibniz, refuta a suposta existência dos átomos. Mas ele faz muito mais do que isso. A partir da estrutura geral do argumento, pode-se estabelecer não apenas que não há átomos, mas também que não existem corpos que sejam absolutamente inflexíveis. Como Leibniz escreve novamente no Specimen Dynamicum:
“Nenhum corpo é tão pequeno que careça de elasticidade.” (Specimen Dynamicum, parte II, §3, GM VI 249: AG 132; cf. Dynamica, GM VI 491)[133].
Mas, argumenta Leibniz, se todos os corpos são elásticos, então todos os corpos devem ser compostos de partes menores. A elasticidade, tanto para Leibniz quanto para seus contemporâneos mecanicistas, não era uma propriedade fundamental da matéria, mas algo que deveria ser explicado mecanicamente conforme a configuração das partes que compõem um determinado corpo. Leibniz escreve, nos Essais de Dynamique, por exemplo, que
“A elasticidade deve sempre derivar de um fluido mais sutil e penetrante, cujo movimento é perturbado pela tensão ou pela mudança do corpo elástico.” (Essais de Dynamique, GM VI 228; cf. Sobre a Própria Natureza, §14, G IV 515: AG 165; carta a Burnett, 1699, G III 260: AG 289)[134].
Leibniz continua:
“E, uma vez que esse fluido, por sua vez, deve ser composto de pequenos corpos sólidos, eles próprios elásticos, percebe-se claramente que essa replicação de sólidos e fluidos prossegue ao infinito.” (Essais de Dynamique, GM VI 228; cf. Specimen Dynamicum, parte II, §3, GM VI 248–49: AG 132–33). (INSERIR IMAGEM)
Leibniz extrai outra consequência interessante do fato de que, em algum grau, todo corpo possui elasticidade. Ao considerar a colisão entre dois corpos elásticos, argumenta que, ao colidirem, ambos os corpos primeiro se comprimem e se deformam; em virtude de sua elasticidade, retornam às suas formas originais e, ao fazê-lo, impulsionam-se, por assim dizer, mutuamente para longe (ver fig. 3). Assim, Leibniz conclui:
“A repercussão e a separação brusca [de um corpo no impacto] surgem da elasticidade que o corpo contém; ou seja, do movimento da matéria etérea fluida que o permeia e, portanto, de uma força interna ou de uma força existente dentro de si mesmo.”
(Specimen Dynamicum, parte II, §5, GM VI 251: AG 135; cf. Novo Sistema, G IV 486: AG 145; Sobre a Própria Natureza, §14, G IV 515: AG 165; G IV 397–399: AG 254–256).
Dessa forma, ele escreve:
“Os corpos […] sempre adquirem seu movimento — na colisão — a partir de sua própria força, à qual o impulso de outro corpo fornece apenas a ocasião para agir e, por assim dizer, uma limitação.” (G IV 397: AG 254)
Dessa maneira, Leibniz afirma, no ensaio Primeiras Verdades, de 1689, que encontramos na natureza uma ilustração da doutrina metafísica segundo a qual “nenhuma substância criada exerce uma ação metafísica ou influxo sobre qualquer outra coisa” (C 521: AG 33)[135].
A doutrina da elasticidade de todos os corpos desempenha um papel central no pensamento maduro de Leibniz sobre o mundo físico. No entanto, ela apresenta uma característica peculiar e digna de nota. No final da primeira seção, discuti uma diferença importante entre a física inicial de Leibniz e o pensamento maduro que emergiu no final da década de 1670. No pensamento maduro, princípios metafísicos, como o princípio da igualdade entre causa e efeito, são entrelaçados na estrutura fundamental do mundo físico e impostos como restrições básicas à atividade das substâncias corpóreas que constituem a base da física leibniziana. No entanto, isso difere do tratamento anterior desses princípios, que, quando satisfeitos, eram apenas um resultado ad hoc do estado do mundo. Por exemplo, no Hypothesis Physica Nova, um corpo menor perde movimento ao colocar em movimento um corpo maior que estava em repouso apenas devido à constituição particular dos corpos.
Mas penso que a doutrina da elasticidade representa uma interessante exceção a essa tendência geral no pensamento tardio de Leibniz. A tese de que todo corpo no mundo deve ser elástico decorre do princípio metafísico (e contingente) da continuidade; é porque o princípio da continuidade deve ser satisfeito que os corpos devem ser compostos de partes menores, de tal maneira que tendam a restaurar-se ao seu estado original quando deformados. Isso significa que o princípio metafísico da continuidade é satisfeito neste mundo apenas devido ao estado físico particular dos corpos. Na doutrina da elasticidade, vislumbramos, por assim dizer, um resquício do pensamento inicial de Leibniz.
5. DEUS, MENTE E FILOSOFIA MECÂNICA:
Nas seções anteriores, esbocei a física de Leibniz e seu fundamento para a dinâmica. Nesta seção final, gostaria de abordar algumas questões mais amplas sobre o lugar da física de Leibniz em seu sistema.
5.1 DEUS, CAUSAS FINAIS E O MUNDO DA FÍSICA:
Neste ensaio, as discussões anteriores demonstraram até que ponto a física de Leibniz, sua filosofia mecanicista e sua dinâmica estão intimamente entrelaçadas com sua concepção de Deus, o governante benevolente do mundo, que escolheu criar o melhor dos mundos possíveis, regido por princípios metafísicos que determinam as leis do movimento a que os corpos obedecem. Como Leibniz frequentemente expressa, tudo dentro do mundo é explicável mecanicamente, mas as próprias leis exigem um apelo a algo além do mundo da filosofia mecanicista, ou seja, a um criador divino. Dessa maneira, Leibniz, de forma deliberada, reintroduz na física a causa final, que havia sido banida pelos mecanicistas anteriores.
A causa final era, evidentemente, uma noção central na filosofia natural aristotélica; com efeito, para muitos — incluindo talvez o próprio Aristóteles — , ela era a mais importante das quatro causas[136]. No entanto, quando a filosofia escolástica passou a ser contestada, as causas finais também foram alvo de críticas. Descartes, por exemplo, argumenta nos Princípios da Filosofia:
“Ao lidarmos com as coisas naturais, nunca derivaremos explicações a partir dos propósitos que Deus ou a natureza possam ter tido em vista ao criá-las, e baniremos inteiramente de nossa filosofia a busca por causas finais. Pois não devemos ser tão arrogantes a ponto de supor que podemos compartilhar dos desígnios de Deus[137].”
Para Descartes, portanto, nossa ignorância acerca das intenções divinas nos impede de recorrer às causas finais na física. Spinoza vai além de Descartes e nega que Deus tenha qualquer intenção. Ele escreve na Ética:
“[Há] uma crença generalizada entre os homens de que todas as coisas na natureza, assim como eles, agem em busca de um fim. Com efeito, consideram certo que o próprio Deus dirige tudo para um fim determinado; pois dizem que Deus fez tudo para o bem do homem e fez o homem para que ele adorasse a Deus. […] Não há necessidade de perder tempo demonstrando que a natureza não tem um objetivo fixo e que todas as causas finais não passam de ficções da imaginação humana. Pois creio que isso já está bastante evidente [a partir das discussões anteriores na Ética] […] que todas as coisas na natureza procedem de uma necessidade eterna e com suprema perfeição[138].” (Ética, I, Apêndice)
Evidentemente, nem todos os filósofos mecanicistas seguiram Descartes e Spinoza na rejeição das causas finais[139]. No entanto, as causas finais estavam claramente sob ataque, e Leibniz via seu papel como o de defendê-las.
A defesa das causas finais por Leibniz está, de certa forma, no centro de sua metafísica e fundamenta toda a sua concepção de contingência e liberdade divina. No entanto, essa defesa também possui uma dimensão que se relaciona mais especificamente com sua física. Já vimos como a ação de Deus se estende à determinação das leis do movimento; Deus cria as substâncias no mundo de tal maneira que elas satisfaçam certos princípios metafísicos, como o princípio da igualdade entre causa e efeito e o princípio da continuidade e, por essa razão, obedecem aos tipos de princípios de conservação que Leibniz estabelece como fundamentais no mundo dos corpos.
Mas Leibniz considera as causas finais relevantes para a física de maneira ainda mais ampla. Ele escreve no Specimen Dynamicum:
“Em geral, devemos sustentar que tudo no mundo pode ser explicado de duas maneiras: ou pelo reino do poder, isto é, pelas causas eficientes, ou pelo reino da sabedoria, isto é, pelas causas finais. Como um arquiteto, Deus governa os corpos para sua glória, dirigindo-os como máquinas que seguem as leis da extensão e da matemática, para utilização das almas. Esses dois reinos interpenetram-se em toda parte, sem que suas leis se confundam ou se perturbem, de modo que, no reino do poder, prevaleça o maior, enquanto, no reino da sabedoria, prevaleça o melhor.” (Specimen Dynamicum, parte I, §14, GM VI 243: AG 126–127).
Um domínio especial, por assim dizer, dentro do reino da sabedoria, é o que Leibniz chama de reino da graça. Ele escreve na Monadologia:
“Uma vez que anteriormente estabelecemos uma perfeita harmonia entre dois reinos naturais — o das causas eficientes e o das causas finais — , devemos notar aqui ainda outra harmonia, entre o reino físico da natureza e o reino moral da graça; a saber, entre Deus considerado como arquiteto do mecanismo do universo e Deus considerado como monarca da cidade divina das mentes […] Essa harmonia conduz as coisas à graça pelos próprios caminhos da natureza. Por exemplo, este globo deve ser destruído e restaurado por meios naturais nos momentos em que o governo das mentes o exigir, para o castigo de uns e a recompensa de outros.”
(Monadologia, §§87–88, G VI 622: AG 224)
Portanto, o mundo da filosofia mecanicista está em harmonia com os reinos da sabedoria e da graça. Tudo no mundo físico que pode ser explicado por Deus pode ser explicado mecanicamente (pressupondo as leis do movimento), e tudo o que pode ser explicado mecanicamente também pode ser explicado por Deus. Isso equivale a dizer que tudo o que a filosofia mecanicista explica é uma consequência direta da escolha e do desígnio de Deus — não apenas as leis do mecanicismo, mas também cada lei em particular. Leibniz escreve no Discurso sobre a Metafísica[140]:
“Quem quer que contemple a admirável estrutura dos animais se verá forçado a reconhecer a sabedoria do autor das coisas. E aconselho aqueles que tenham algum sentimento de piedade e mesmo um verdadeiro sentimento filosófico a se afastarem das expressões de certos chamados livres-pensadores, que dizem que vemos porque acontece de termos olhos, e não porque os olhos foram feitos para ver.” (Discurso sobre a Metafísica, §19, G IV 445: AG 52–53)
Como resultado, Leibniz sugere que podemos recorrer à sabedoria divina para resolver problemas específicos da física, nos casos em que o procedimento por meio das causas eficientes se revela excessivamente complexo, especialmente na ótica (ver SD, parte I, §14; GM III, 243:126; AG 51–52:351; Discurso, pars. 22, G IV 447–48:54–55)[141].
Além disso, a harmonia entre os dois reinos implica que, ao realizar suas intenções no mundo criado, Deus as concretiza por meio de causas mecânicas. Deus tem razões para tudo em sua criação, mas isso não compromete o alcance do mecanicismo de Leibniz. Como ele mesmo sugere na passagem citada acima, até mesmo o Dilúvio de Noé pode ser explicado mecanicamente. Contudo, embora tudo possa ser explicado nos termos de Deus, Leibniz não acredita que tudo deva ser explicado dessa maneira. No ensaio de maio de 1702, Leibniz escreve:
“É vazio recorrer à primeira substância — Deus — para explicar os fenômenos de suas criaturas, a menos que, ao mesmo tempo, seus meios ou fins sejam detalhadamente explicados, e que as causas eficientes próximas ou mesmo as causas finais pertinentes sejam corretamente atribuídas, de modo que Ele se manifeste por meio de seu poder e sabedoria.” (G IV, 397–98; AG 254)
Segundo Leibniz, tudo pode ser explicado nos termos de Deus. No entanto, a menos que se apresentem detalhes específicos, a explicação carece de conteúdo; dizer que houve um dilúvio universal porque Deus assim o quis é uma explicação que pode ser aplicada a qualquer fenômeno do mundo. Para que tal explicação ganhe substância, é necessário indicar a razão específica pela qual Deus decidiu inundar o mundo naquele momento e os meios pelos quais realizou esse fim.
5.2 ALMA, FORMA E GRAVIDADE
Na Teodiceia, Leibniz retomou um argumento de que particularmente gostava:
“O Sr. Descartes quis… fazer com que uma parte da ação do corpo dependesse da mente. Ele pensava conhecer uma regra da natureza segundo a qual, conforme acreditava, a mesma quantidade de movimento se conserva nos corpos. Ele não julgava possível que a influência da mente pudesse violar essa lei dos corpos, mas acreditava, contudo, que a mente poderia ter o poder de modificar a direção dos movimentos que estão nos corpos. […] No entanto, desde o Sr. Descartes, duas verdades importantes sobre esse assunto foram descobertas. A primeira é que a quantidade de força absoluta, que de fato se conserva, é distinta da quantidade de movimento, como demonstrei em outro lugar.
A segunda descoberta é que a mesma direção se conserva em todos aqueles corpos que se supõe atuarem uns sobre os outros, independentemente do modo como colidam. Se o Sr. Descartes tivesse conhecido essa regra, teria tornado a direção dos corpos tão independente da mente quanto a sua força. E creio que isso o teria conduzido diretamente à hipótese da harmonia pré-estabelecida, à qual essas regras me levaram. Pois, além do fato de que a influência física de uma dessas substâncias sobre a outra é inexplicável, considerei que a mente não pode agir fisicamente sobre o corpo sem desordenar completamente as leis da natureza.”
(Teodiceia, §§ 60–61; G VI, 135–36; cf. Monadolgia, §80; G VI, 620–21: AG 223; carta a Arnauld, 30 de abril de 1687, G II, 94: AG 83–84; carta a Remond, janeiro de 1714, G III, 607: L 655; G IV, 497–98; G VI, 540: L 587.)
Os filósofos do século XVII se depararam com a questão de como seres racionais e sensíveis, como nós, poderiam se integrar à estrutura da filosofia mecânica. Esse problema era particularmente desafiador para aqueles que, como Descartes e seus seguidores, defendiam a existência de uma mente ou alma imaterial e incorpórea, ligada ao corpo humano e responsável por seus movimentos voluntários[142]. Enquanto para Descartes, a mente pode causar diretamente mudanças no corpo, seus seguidores ocasionalistas, por sua vez, defendiam que uma volição da mente pode produzir uma mudança corporal por meio da ação de Deus. Contudo, essa concepção gera um problema para a filosofia mecânica: se a mente pode ser a causa de uma mudança corporal, seja de modo direto ou ocasional, então parece que ela pode interferir nas leis da natureza.
Leibniz atribui a Descartes a ideia de que a mente pode alterar a direção em que uma parte do corpo se move, mas não sua velocidade, garantindo assim que seu princípio da conservação — a conservação da quantidade de movimento — seja preservado, mesmo no caso do movimento voluntário[143]. No entanto, Leibniz observa que, com a derrocada da lei cartesiana, isso já não é possível. Entre as leis que Leibniz propõe está o que chamamos de conservação do progresso comum, discutida na seção 4.3, e que hoje conhecemos como conservação do momento. Essa lei de conservação, que se aplica tanto a colisões elásticas quanto não elásticas, seria violada caso a mente fosse capaz de modificar a direção do movimento de um corpo. Portanto, o que se faz necessário, segundo Leibniz, é uma maneira de preservar as leis da natureza contra violações, ao mesmo tempo em que se permite a existência de seres vivos cujo comportamento é determinado, ao menos em parte, por algo aparentemente externo ao mundo material. A solução de Leibniz é a harmonia pré-estabelecida.
A doutrina da harmonia pré-estabelecida é mais conhecida como uma solução para o problema da interação mente-corpo e para a questão de como uma mente poderia causar uma mudança em um corpo (ver, por exemplo, G IV, 498–500: AG 147–49). Mas essa questão não se limita a isso; ela representa uma solução para o desafio de compreender a existência de seres vivos em um mundo mecânico. Assim, ao expor suas ideias, Leibniz, mais uma vez, recorre à imagem de dois reinos, embora de maneira um pouco diferente daquela empregada acima em relação a Deus. Leibniz escreve na Monadolgia:
“A alma segue suas próprias leis, e o corpo também segue as suas; e eles concordam em virtude da harmonia pré-estabelecida entre todas as substâncias, uma vez que todas são representações de um único universo. […] As almas agem segundo as leis das causas finais, por meio das apetências, dos fins e dos meios. Os corpos, no entanto, agem segundo as leis das causas eficientes, ou dos movimentos. E esses dois reinos — o das causas eficientes e o das causas finais — estão em harmonia entre si. […] Segundo esse sistema, os corpos agem como se não houvesse almas (ainda que isso seja impossível), e as almas agem como se não houvesse corpos; e ambos agem como se um influenciasse o outro.”
(Monadolgia, §§ 78–81; G VI, 620–21: AG 223; cf. Antibarbarus physicus, G VII, 344: AG 319; quinta carta a Clarke, § 124, G VII, 419: AG 345–56.)
Assim, Leibniz sustenta que o que ocorre nos seres vivos pode ser explicado tanto mecanicamente — em termos de tamanho, forma e leis do movimento — quanto em conformidade com a atividade da alma; e, segundo Leibniz, essas duas explicações sempre corresponderão entre si. Dessa forma, temos uma espécie de interação mente-corpo sem qualquer violação das leis da natureza.
É importante lembrar que essa explicação se aplica de maneira bastante geral para Leibniz, pois, como discutimos acima, nas seções 3.2 e 3.3, ele defende que o mundo está repleto de seres vivos. Todo corpo tem como fundamento substâncias corpóreas, que são compostas por uma unidade de força primitiva ativa e força primitiva passiva. Ou, dito de outra forma, como Leibniz identificou a força primitiva ativa com a forma ou alma, e a força primitiva passiva com a matéria ou corpo, essas substâncias corpóreas que fundamentam o mundo físico podem ser concebidas como substâncias aristotélicas — unidades de forma e matéria que constituem os entes, conforme discutimos anteriormente.
Assim, ele argumenta que o mundo está repleto de seres vivos semelhantes a nós, pois possuem tanto almas quanto corpos. Leibniz escreve a Thomas Burnett em 1697:
“Acredito que tudo acontece mecanicamente, como sustentam Demócrito e Descartes […] mas, no entanto, tudo também acontece vitalmente e de acordo com as causas finais, sendo tudo repleto de vida e percepções, em oposição à opinião dos democritianos.”
(Carta a Burnett, 24 de agosto de 1697; G III, 217)
“Acredito que tudo realmente ocorre mecanicamente na natureza e pode ser explicado por causas eficientes, mas que, ao mesmo tempo, tudo também acontece moralmente, por assim dizer, e pode ser explicado por causas finais. Esses dois reinos — o moral, das mentes e das almas, e o mecânico, dos corpos — interpenetram-se e estão em perfeita harmonia por meio da ação do Autor das coisas, que é, ao mesmo tempo, a primeira causa eficiente e o fim último.”
(Carta a Des Billettes, 4/14 de dezembro de 1696; G VII, 451: L 472; cf. carta a Conring, 19 de março de 1678, G I, 199: L 190; G IV, 559–60: L 577–78.)
Não apenas a atividade voluntária dos seres humanos pode ser explicada através da alma, senão que, tudo no mundo pode ser explicado dessa maneira; pois, em sua raiz, há seres vivos, ou almas, que são ligadas a corpos em toda parte na natureza. Ou, dito de outra forma, como esses seres vivos são substâncias corpóreas — unidades de matéria e forma — , tudo pode ser explicado ao modo dos escolásticos.
Contudo, ao mesmo tempo, tudo na natureza também pode ser explicado mecanicamente, inclusive os movimentos voluntários de criaturas como nós[144]. Dessa forma, Leibniz, de maneira bastante consciente, reconcilia a filosofia escolástica com a filosofia mais radicalmente mecanicista dos modernos: ambas estão corretas, e as duas perspectivas sempre estarão em concordância.
Leibniz escreve no Discurso que “os pensamentos dos teólogos e filósofos chamados escolásticos não devem ser inteiramente desprezados. […] Eles não estão tão distantes da verdade, nem são tão ridículos quanto imagina a maioria de nossos novos filósofos.” (Discurso, §11, G II, 12: AG 43; §10, G IV, 434: AG 42.)
Ao tratar das mentes e dos corpos humanos, sempre que possível podemos e devemos explicar as ações voluntárias com base na volição da mente. No entanto, de forma mais geral, esse não é o caso quando se trata das substâncias corpóreas animadas que compõem o mundo físico de Leibniz. Ainda que tudo possa ser explicado através das formas que Leibniz reconhece na natureza, elas não devem ser utilizadas para explicar eventos particulares; sua função própria, segundo Leibniz, é apenas fundamentar as leis gerais pelas quais os fenômenos particulares devem ser explicados. Ele explica isso no Discurso sobre a Metafísica:
“Reconheço que a consideração dessas formas não contribui para esclarecer os detalhes da Física e não deve ser aplicada na explicação de fenômenos particulares. Esse foi justamente o erro dos Escolásticos e dos médicos antigos que os seguiram: acreditaram que poderiam explicar as propriedades dos corpos apenas mencionando formas e qualidades, sem examinar seu real funcionamento. Isso seria como afirmar que um relógio possui uma qualidade de ‘relogiariedade’, derivada de sua forma, sem se aprofundar no que isso realmente significa — uma explicação aceitável para quem compra um relógio, desde que deixe seus cuidados a cargo de outra pessoa.” (Discurso, §101, G IV, 434: AG 42; cf. carta a Arnauld, 14 de julho de 1686, G II, 58; G IV, 345–46; G IV, 397–98: AG 254–5; Novo Sistema, G IV, 479: AG 139; Specimen Inventorum, §11, G VII, 317; SD, parte I, §13; GM VI, 242–43: AG 125–26.)
Leibniz argumenta que a Física deve ser fundamentada em um mundo aristotélico de substâncias corpóreas, compostas de forma e matéria — e de pequenos organismos –, de modo que tudo pode ser explicado nesses termos. No entanto, ele admite que, embora essas explicações sejam sempre verdadeiras, raramente são informativas — em muitos casos, menos ainda do que simplesmente recorrer a ação divina. Assim, para Leibniz, os Escolásticos não devem ser desprezados, mas, tampouco seguidos cegamente.
Essa posição reflete sua atitude diante de outros dissidentes da nova Filosofia Mecânica. Pois, Henry More, platonista de Cambridge, considerava a Filosofia Mecânica valiosa não pelas explicações que fornecia, mas pelo que deixava de explicar. Para More e seus seguidores, ao definir os limites do que podia ser explicado pela Física, a Filosofia Mecânica também revelava a necessidade de algo além do mundo mecânico. Como consequência, eles postularam uma diversidade de substâncias imateriais para justificar desde fenômenos como fantasmas e assombrações até a própria gravidade[145]. Leibniz objetou, no SD:
“Embora eu reconheça um princípio ativo e, por assim dizer, vital, superior às noções materiais e presente em toda parte nos corpos, não compartilho da visão de Henry More e de outros pensadores ilustres, conhecidos por sua piedade e inteligência, que recorreram a um Archaeus — para mim ininteligível — ou a um princípio hylárquico para explicar os fenômenos, como se nem tudo na natureza pudesse ser compreendido mecanicamente. […] Digo, porém, que não concordo com tais ideias, e essa filosofia me agrada tanto quanto a teologia de certos homens que acreditavam que Júpiter era responsável pelos trovões e pela neve, chegando ao ponto de difamar aqueles que buscavam explicações mais específicas, acusando-os de ateísmo. Em minha opinião, o melhor caminho é o intermediário, aquele que concilia tanto a piedade quanto o conhecimento. Ou seja, reconhecemos que todos os fenômenos corpóreos podem ser explicados por causas eficientes e mecânicas, mas compreendemos que essas próprias leis mecânicas, enquanto conjunto, derivam de razões superiores. (SD, parte I, §13, GM VI, 242: AG 125–26; cf. Sobre a Própria Natureza, §2, G IV, 505: AG 156; Antibarbarus physicus, G VII, 339–40: AG 314–15.)
Assim, embora Leibniz concorde com More na rejeição de uma ontologia mecanicista estrita, baseada apenas em substâncias extensas, e na introdução de princípios ativos na natureza, ele não acredita que tais princípios devam ser usados para explicar fenômenos particulares — assim como as formas escolásticas também não deveriam[146].
É nesse contexto que devemos compreender a reação de Leibniz à teoria newtoniana da gravitação universal. Em seus Principia, Newton argumentou que todos os corpos no universo se atraem mutuamente por meio de uma força que varia inversamente ao quadrado da distância. Leibniz certamente aceitou isso, ao menos no que diz respeito ao que mantém os planetas em suas órbitas[147]. No entanto, em outros aspectos, ele foi decididamente hostil à teoria. Embora a posição do próprio Newton não fosse inteiramente clara a esse respeito, era possível ter a impressão — e, de fato, alguns de seus seguidores sustentavam explicitamente — de que a gravitação universal dos Principia deveria ser considerada uma propriedade fundamental, irredutível e inexplicável da matéria enquanto tal, algo que não se precisaria nem poderia explicar mecanicamente[148].
Foi contra essa ideia que Leibniz se opôs, vendo nela uma revivescência dos piores abusos Escolásticos. Em um ensaio não publicado, o Antibarbarus Physicus, Leibniz escreveu:
“É, infelizmente, nosso destino que, por uma certa aversão à luz, as pessoas amem ser reconduzidas às trevas. Vemos isso hoje, quando a grande facilidade para adquirir conhecimento gerou desprezo pelas doutrinas ensinadas, e a abundância de verdades de máxima clareza levou ao amor por absurdos difíceis. […] É permitido reconhecer forças magnéticas, elásticas e de outras naturezas, apenas na medida em que compreendemos que elas não são primitivas nem inexplicáveis, mas derivam de movimentos e formas. No entanto, os novos defensores dessas ideias não querem isso. Notou-se que, em nossa época, essa visão foi de fato sugerida por alguns de nossos predecessores, que sustentaram que os planetas gravitam e tendem uns para os outros. A partir disso, apressaram-se em concluir que toda matéria possui, por natureza, um poder atrativo inato, dado por Deus, e que, em certo sentido, os corpos se atraem por um ‘amor mútuo’. […] Eles argumentam como se não houvesse espaço para explicações mecânicas pelas quais essa atração […] pudesse ser explicada pelo movimento de corpos menores que permeiam a matéria. Esses mesmos indivíduos ameaçam nos impor outras qualidades ocultas desse tipo e, assim, no fim, podem acabar nos conduzindo de volta ao reino das trevas.” (G VII, 337–38: AG 312, 313–14.)
Em particular, o reino das trevas que Leibniz tem em mente aqui é, evidentemente, a filosofia natural dos Escolásticos. Pois, se concedermos aos newtonianos sua força de atração, Leibniz argumenta no prefácio aos Novos Ensaios: “Não vejo o que impediria nossos escolásticos de dizer que tudo acontece por meio de potências.” (A VI.vi: RB 61)
Por implicação, a explicação newtoniana da gravitação é tão vazia quanto a explicação das propriedades de um relógio em termos de sua relogiariedade inata.
Leibniz, por vezes, acrescenta outra consideração e argumenta que, para Deus impor aos corpos o comportamento que os newtonianos imaginam, seria necessário um milagre. Ele escreve em sua correspondência com Clarke:
“Se Deus quisesse fazer com que um corpo se movesse livremente no éter em torno de um certo centro fixo, sem que nenhuma outra criatura agisse sobre ele, digo que isso não poderia ocorrer sem um milagre, pois não pode ser explicado pela natureza dos corpos. Um corpo livre naturalmente se afasta de uma curva na tangente. Portanto, sustento que a atração dos corpos, propriamente dita, é algo miraculoso, já que não pode ser explicada pela natureza dos corpos.” (Terceira carta a Clarke, §17, G VII, 366–67: AG 327; cf. Quarta carta a Clarke, §45, G VII, 377: AG 232; Quinta carta a Clarke, §§35, 112–113, 118, G VII, 417, 418: AG 336, 344, 345.)
Seria um milagre se Deus simplesmente movesse os corpos da maneira que os newtonianos afirmam que ocorre. No entanto, Leibniz acredita que não haveria nenhum milagre em Deus estruturar o mundo de tal forma que, por meio de causas mecânicas, as coisas no mundo se comportassem exatamente como Newton as descreveu.
Por mais interessante que esse argumento seja, não estou certo de que Leibniz tenha pleno direito a ele. Pois os newtonianos não estão afirmando que Deus simplesmente move os corpos, mas sim que Deus dotou os corpos de uma natureza tal que eles se atraem mutuamente da maneira apropriada, e que essa própria natureza dá origem diretamente à lei newtoniana da gravitação universal, sem a necessidade de uma causa mecânica. A alegação deles não é que a atração entre os corpos vá além de sua natureza, mas sim que essa natureza é algo diferente do que Leibniz — e outros mecanicistas mais rigorosos — defendiam.
Mas Deus não poderia ter dado aos corpos tal natureza? Talvez. Mas, se assim fosse, então o padrão mecanicista de inteligibilidade — a exigência de que tudo no mundo seja explicável em termos de corpos colidindo entre si segundo as leis do movimento — estaria errado. E se esse padrão estiver errado, então, segundo Leibniz, o mundo será para sempre ininteligível para nós.
Leibniz escreveu a Herman Conring em 9 de março de 1678, justamente no momento em que sua Física madura começava a emergir:
“Não reconheço nada no mundo além de corpos e mentes […] e, nos corpos, quando considerados à parte da mente, nada além de magnitude, figura, posição e suas respectivas mudanças. Tudo o mais é meramente dito, mas não compreendido; são sons sem significado. Nada no mundo pode ser entendido com clareza a menos que seja reduzido a esses elementos. […] Se as coisas físicas não puderem ser explicadas por leis mecânicas, Deus não poderá, mesmo que queira, revelar-nos e explicar-nos a natureza.” (G I, 197: L 189)
Leibniz parece ter mantido essa posição ao longo de toda a sua vida. Embora tenha buscado conciliar suas ideias mecanicistas com as concepções Escolásticas, ele rejeitava por completo a reintrodução de tendências inatas específicas no mundo, como a força atrativa newtoniana.
Quando faleceu, em 1716, o mecanicismo estrito que, em sua juventude, fora tão moderno e ousado — a visão sobre a qual construiu sua física metafísica — já estava a caminho de se tornar um anacronismo[149].
6. REFERÊNCIAS E NOTAS EXPLICATIVAS
[1] Infelizmente, o espaço não permite uma discussão sobre outro aspecto importante da Física de Leibniz: seu uso do recém-desenvolvido cálculo em seus trabalhos a partir de meados da década de 1680. Para uma análise desse tema, ver Blay, La Naissance de la Mécanique Analytique, pp. 113–152.
[2] Para um desenvolvimento representativo dos fundamentos da Filosofia Natural aristotélica, ver, por exemplo, De Principiis Naturae, de Santo Tomás de Aquino, traduzido em Selected Writings of St. Thomas Aquinas, por Goodwin; a terceira parte da Summa Philosophiae Quadripartita, de Eustachius a Sancto Paulo, um manual popular originalmente publicado em 1609, mas frequentemente reimpresso posteriormente; e La Physique, de Scipion Dupleix, originalmente publicado em 1603, também reimpresso mais tarde e agora disponível em uma edição editada por Roger Ariew, baseada na edição de 1640. Para análises modernas, ver, por exemplo, Grant, Physical Science in the Middle Ages, e Lindberg (ed.), Science in the Middle Ages.
[3] Sobre a transmissão dos textos aristotélicos nos séculos XII e XIII, ver, por exemplo, Dad, “Aristoteles Latinus”, em Kretzmann, Kenny e Pinborg (eds.), The Cambridge History of Later Medieval Philosophy, pp. 45–79; e Lohr, “The Medieval Interpretation of Aristotle”, na mesma obra (op. cit.), pp. 82–98. Sobre as condenações do século XIII, ver Dad e Lohr, bem como Grant, “The Condemnation of 1277: God’s Absolute Power, and Physical Thought in the Late Middle Ages”, pp. 211–244. Os ataques no século XIII vieram principalmente de teólogos conservadores, cujas ideias tradicionais estavam em risco de serem substituídas pelas novas tendências aristotélicas. Já nos séculos XV e XVI, o aristotelismo tornou-se a filosofia dominante, e os ataques passaram a vir dos inovadores: humanistas, céticos, defensores de diversas formas de platonismo, hermetismo, etc. Sobre esse contexto, ver, por exemplo, Ingegno, “The New Philosophy of Nature”, em Schmitt e Skinner, The Cambridge History of Renaissance Philosophy, pp. 236–631; e Menn, “The Intellectual Setting of Seventeenth-Century Philosophy”, em The Cambridge History of Seventeenth-Century Philosophy. Apesar dos ataques posteriores, a filosofia aristotélica, incluindo a filosofia natural aristotélica, continuou central nos colégios e universidades até o século XVII. Para mais detalhes, ver Schmitt, Aristotle and the Renaissance.
[4] Para uma visão geral da filosofia mecanicista, ver Dijksterhuis, The Mechanization of the World Picture, e Westfall, The Construction of Modern Science: Mechanisms and Mechanics. Sobre as tentativas do século XVII de reconciliar Aristóteles com a nova filosofia mecanicista, especialmente no que diz respeito a Leibniz, ver Mercer, “The Seventeenth-Century Debate Between the Modems and the Aristotelians: Leibniz and the Philosophia Reformata”, em Marchlewitz e Heinekamp (eds.), Leibniz’ Auseinandersetzung mit Vorgängern und Zeitgenossen, bem como sua obra Leibniz’s Metaphysics: Its Origins and Development.
[5] Sobre a educação inicial de Leibniz, ver o Capítulo 2 deste Companion.
[6] O próprio relato de Leibniz sobre sua inclinação para os modernos encontra-se em sua carta a Nicolas Remond, de 10 de janeiro de 1714 (G III, 606: L 654–55). No entanto, isso não significa que ele tenha abandonado completamente a filosofia aristotélica. Talvez esse momento deva ser visto como o ponto em que Leibniz iniciou o projeto de reconciliar Aristóteles com os modernos. Para uma análise de seus primeiros contatos com a filosofia mecanicista, ver Mercer, Leibniz’s Metaphysics.
[7] As primeiras evidências encontram-se em uma carta que Leibniz escreveu ao seu mentor Jakob Thomasius em 16/26 de fevereiro de 1666, na qual discute uma questão levantada por Thomasius sobre o motivo pelo qual Anaxágoras falou da possibilidade da neve negra e demonstra certo conhecimento das doutrinas mecanicistas da percepção. Ver A II.i 4–5. No De Arte Combinatoria (1666), há várias referências ao tratado materialista de Hobbes, De Corpore, bem como uma breve discussão sobre explicações atomistas, com menção aos tratados atomistas de Gassendi e J.C. Magnenus. Ver A VI.i 178, 183, 194, 216.
Nas teses para a disputatio pública que Leibniz adicionou à obra, ele também incluiu a tese de que as quatro qualidades primárias aristotélicas — quente, frio, seco e úmido — podem ser reduzidas a densidade e rarefação, seguindo o estilo do mecanicista do início do século XVII, Sir Kenelm Digby. Ver A VI.i 229 e Digby, Two Treatises in the one of which the Nature of Bodies in the other the Nature of Mans Soule is looked into in the way of discovery of the Immortality of Reasonable Soules (Paris, 1644), Livro I, caps. III-IV. Os escritos teológicos de Leibniz nos anos imediatamente seguintes também demonstram seu conhecimento e certa simpatia pela nova filosofia mecanicista. Por exemplo, no De Transubstantiatione (ca. 1668), Leibniz trabalha dentro de um quadro no qual as ações da mente são pensamento, e as do corpo, movimento. Ver A VI.i 508–521: L 115–118. Na importante obra Confessio Naturae contra Atheistas (1669), Leibniz faz uma declaração explícita de apoio ao programa mecanicista. Ver A VI.i 489: L 109–110.
[8] Ver também: Garber, “Motion and Metaphysics in the Young Leibniz,” Hooker (ed.), Leibniz: Critical and Interpretative Essays, e Mercer, Leibniz’s Metaphysics. Capítulo 3 deste Companion. A recriação contínua do mundo por Deus foi um dos pressupostos fundamentais de um dos mais importantes argumentos em favor do ocasionalismo. Sobre isso, ver Garber, “How God causes Motion: Descartes, Divine Sustenance, and Occasionalism,” pp. 567–580. Curiosamente, Leibniz identifica essa visão como “uma ideia que nunca havia sido ouvida até agora” (A II.i 23–24: L 102), o que sugere que ele não estava bem familiarizado com a literatura cartesiana. Sua reação à doutrina do ocasionalismo será discutida com mais profundidade abaixo, na seção 4.4.
[9] Para mais detalhes, ver Capítulo 4 deste Companion.
[10] 10. Este é o tema principal da obra de Mercer, Leibniz’s Metaphysics.
[11] As anotações encontram-se em A VI.ii 157–218; os textos HPN e TMA estão no mesmo volume. Ambos também são encontrados em GM VI e G IV, embora haja algumas diferenças confusas na numeração das seções. O título alternativo Theoria Motus Concreti não aparece na página de título do HPN, mas sim na primeira página do texto.
[12] Para uma análise mais detalhada desses escritos, ver Hannequin, La Première Philosophie de Leibniz, vol. II, pp. 17–224, especialmente pp. 59–148.
[13] A tradução de Loemker, embora excelente no geral, deve ser tratada com extrema cautela nesses trechos. Leibniz demonstra aqui uma influência especialmente hobbesiana. Sobre isso, ver Kabitz, Die Philosophie des jungen Leibniz e Bernstein, “Conatus, Hobbes, and the Young Leibniz,” pp. 25–37
[14] A explicação da colisão encontra-se em A VI.ii 268: L 142, §§20–24; suas consequências são apresentadas em uma série de teoremas que se seguem imediatamente.
[15] Segundo o princípio de conservação de Descartes, a soma, para todos os corpos, do produto do tamanho pela rapidez (quantidade de movimento) é uma quantidade conservada por Deus; ver Descartes, Princípios da Filosofia, parte II, §36. Para uma discussão sobre o tema, ver Garber, Descartes’ Metaphysical Physics, cap. 7. É importante observar que o princípio de Descartes difere da conservação do momento. O momento (momentum) é uma grandeza vetorial, produto da massa pela velocidade; uma mudança de direção implica uma mudança de momento, mesmo que a velocidade permaneça a mesma. No entanto, na quantidade de movimento cartesiana, a soma permanece constante, mesmo quando a direção muda. Leibniz rejeita o princípio cartesiano de conservação da quantidade de movimento, mas adere ao princípio da conservação do momento; ver seção 4.3.
[16] A história da criação segundo Descartes pode ser encontrada no capítulo 7 de Le Monde e em Princípios, parte III, §46. Essas duas exposições diferem um pouco: no Le Monde, o estado inicial do mundo é um completo caos, enquanto nos Princípios, Descartes imagina Deus criando partículas de tamanho aproximadamente igual. No início da Parte V do Discurso do Método, Descartes esboça todo o programa de derivação do estado presente do mundo a partir da criação; ver Adam e Tannery (eds.), Oeuvres de Descartes, VI 42ss.
[17] Para uma discussão mais detalhada, ver Hannequin, La Première Philosophie, pp. 103–107.
[18] Ibid., pp. 120–122.
[19] Sobre as leis de Wren, ver Wren, “Lex Collisionis Corporum,” em Philosophical Transactions of the Royal Society (março de 1669). Elas também podem ser encontradas em Hall e Hall (eds.), The Correspondence of Henry Oldenburg, vol. V, pp. 319–320 (Latim), 320–321 (Inglês). A obra de Huygens, “Règles du Mouvement dans la Rencontre des Corps”, foi publicada no Journal des Savants em 18 de março de 1669 e também pode ser encontrada em Œuvres complètes de Christiaan Huygens, vol. XVI, pp. 179–181. O principal trabalho de Huygens sobre impacto de corpos foi iniciado já em 1656, mas só foi publicado após sua morte; ver “De Motu Corporum ex Percussione,” em Œuvres, vol. XVI, pp. 29–168. Sobre Huygens, ver Dijksterhuis, The Mechanization of the World Picture, pp. 373–376. Sobre Huygens e Wren, ver Westfall, Force in Newton’s Physics, pp. 146–157 (sobre Huygens) e 203–205 (sobre Wren).
[20] 20. Sobre a doutrina da substância de Leibniz durante esse período, ver capítulo 4 deste Companion. O ocasionalismo parece ressurgir brevemente no final da década, no Pacidius Philalethi (outubro de 1676); ver C 6171, 624–625.
[21] Para análises dos trabalhos físicos de Leibniz nesse período, ver: Belaval, “Premières Animadversions de Leibniz sur les Principes de Descartes,” em Mélanges Alexandre Koyré, vol. II: L’aventure de l’esprit, pp. 29–56. Fichant, “La ‘Réforme’ Leibnizienne de la Dynamique, d’après des textes inédits.” Fichant, “Les Concepts Fondamentaux de la Mécanique selon Leibniz, en 1676.” Fichant, “Neue Einblicke in Leibniz’ Reform seiner Dynamik (1678),” pp. 48–68. Robinet, Architectonique Disjonctive, Automates Systémiques et Idéalité Transcendentale dans l’œuvre de G. W. Leibniz, cap. 5.
[22] O texto também está disponível, acompanhado de um comentário valioso, em Belaval, “Premières Animadversions.” E Belaval, “Premières animadversions,” p. 46.
[23] Isso parece marcar uma mudança em relação aos primeiros escritos de Leibniz, incluindo as notas iniciais sobre Descartes, que parecem ter sido escritas aproximadamente na mesma época. Também parece divergir da posição adotada nas “Propositiones” de 1672, cujo tema central é que, na física do TMA, o movimento desapareceria do mundo, a menos que houvesse uma mente para acrescentá-lo; ver A VI.iii 66–68, 72, bem como A VI.ii 280.
[24] Citado em FC, p. LXIV. Infelizmente, Foucher de Careil não fornece uma fonte identificável para essa citação, e não foi possível verificá-la em uma fonte mais confiável, o que gera certa incerteza quanto à sua datação.
[25] É evidente que esse princípio já ocupava a mente de Leibniz desde meados da década de 1670; ver A VI.iii 490ff., de 1º de abril de 1676, onde Leibniz discute extensamente esse princípio. Para uma análise mais detalhada, ver Fichant, “Les Concepts Fondamentaux,” pp. 228ff.
[26] É evidente que esse princípio já ocupava a mente de Leibniz desde meados da década de 1670; ver A VI.iii 490ff., de 1º de abril de 1676, onde Leibniz discute extensamente esse princípio. Para uma análise mais detalhada, ver Fichant, “Les Concepts Fondamentaux,” pp. 228ff.
[27] Esse é um argumento que Leibniz repetiu frequentemente em escritos posteriores; para uma discussão mais aprofundada, ver seção 4.3.
[28] Esse manuscrito e sua história são analisados em Fichant, “La ‘Réforme’,” e também em Robinet, Architectonique Disjonctive, cap. 5. Fichant planeja publicar o manuscrito integralmente, com comentários, mas, até o momento desta escrita, essa edição ainda não foi publicada.
[29] Ver Fichant, “La ‘Réforme’,” pp. 199, 202–203.
[30] É difícil determinar exatamente quando Leibniz chegou a essa conclusão. Fichant, “La ‘Réforme’,” p. 207, enfatiza que, no importante documento de janeiro de 1678, onde Leibniz afirma pela primeira vez a conservação de mv², a questão da natureza do corpo não é devidamente abordada.
[31] Para algumas observações bibliográficas sobre essa obra, ver nota 37.
[32] Um esboço escrito por Leibniz para um livro sobre os elementos da física, que os editores da Edição da Academia datam com segurança entre 1678–1682 com base na análise de marcas d’água, indica a amplitude dos interesses científicos de Leibniz nesse período. Ver VE III 649–653 (L 277–280). É difícil identificar todos os manuscritos da época (1679–1686) que possam ser relevantes, pois muitos ainda não foram publicados, e a datação das notas disponíveis frequentemente apresenta problemas. Para algumas notas relacionadas aos fundamentos da física, que os editores da Edição da Academia também datam entre 1678–1682, ver VE III 625–648; VE VII 1666–1679; VE VIII 2035–2045. Vale ressaltar que esses documentos incluem apenas materiais considerados de interesse filosófico pelos editores; os textos mais técnicos continuam, em grande parte, inéditos.
[33] 33. O texto encontra-se em GM VI 117–119, acompanhado de um apêndice posterior nas pp. 119–123 (L 296–301). Esse não foi o primeiro artigo científico de Leibniz na década de 1680, mas pode-se dizer que a Brevis Demonstratio marca o início formal de sua tentativa de divulgar publicamente seu programa maduro para a física.
[34] Para análises da controvérsia, ver especialmente: Iltis, “Leibniz and the Vis Viva Controversy,” pp. 21–35. Costabel, “Contribution à l’offensive de Leibniz contre la Philosophie Cartésienne en 1691–1692,” pp. 264–287. Costabel, Leibniz and Dynamics.
[35] Leibniz afirma não ter visto o texto completo dos Principia de Newton até sua chegada a Roma, em abril de 1689, tendo tido acesso apenas a uma resenha publicada nos Acta Eruditorum antes disso. Ver GM VI 189 e GM VII 329. Para as primeiras reações de Leibniz à obra de Newton, ver: Leibniz, Marginalia in Newtoni Principia Mathematica (1687), ed. Fellmann. Meli, The Development of Leibniz’s Techniques and Ideas about Planetary Motion in the Years 1688 to 1690. Meli, “Leibniz’s Excerpts from the Principia Mathematica,” pp. 477–505. Em The Development, p. 48., Meli tenta demonstrar que as notas de Leibniz sobre os Principia podem datar de antes da viagem à Roma, lançando dúvidas sobre o próprio relato de Leibniz sobre seu contato com a física newtoniana. No entanto, esse argumento parece inconclusivo, como sugere “Leibniz’s Excerpts,” p. 478.
[36] O texto da Dynamica foi publicado pela primeira e única vez em GM VI 281–514. Para uma discussão sobre os planos de Leibniz para a publicação do livro, ver Robinet, Architectonique Disjonctive, pp. 261ss. Embora a maior parte da obra possa ter sido concluída na Itália, o “specimen” introdutório dos argumentos provavelmente foi escrito após janeiro de 1691; ver AG 105–106.
[37] O SD (Specimen Dynamicum) pode ser encontrado em GM VI 234–254: AG 117–138. O texto de Gerhardt foi superado por uma nova edição, editada e traduzida para o alemão por Dosch, Most e Rudolph, na qual os editores fornecem um texto com um aparato crítico completo, além de uma versão preliminar inédita da primeira parte. Os editores numeraram os parágrafos do texto, e por isso as referências ao SD foram feitas através das numerações do parágrafo; neste capítulo, também são fornecidas referências ao texto de Gerhardt. Deve-se notar que apenas a primeira parte foi publicada por Leibniz; a segunda parte permaneceu manuscrita e só foi publicada após sua morte. Para um estudo sobre a composição do SD, ver Most, “Zur Entwicklung von Leibniz’ Specimen Dynamicum,” pp. 148–163. Alguns dos conteúdos mais filosoficamente relevantes do SD são repetidos em um ensaio importante datado de maio de 1702, porém não publicado durante a vida de Leibniz; ver GM VI 98–106 ou G IV 393–400: AG 250–256.
[38] O texto encontra-se em GM VI 144–161; uma segunda versão (não publicada) encontra-se em GM VI 161–187. Para análises da teoria dos vórtices de Leibniz, ver: Aiton, The Vortex Theory of Planetary Motions. Aiton, “The Mathematical Basis of Leibniz’s Theory of Planetary Motion,” pp. 209–225. Meli, The Development of Leibniz’s Techniques and Ideas about Planetary Motion.
[39] Destacam-se também estudos menores sobre as leis do movimento (alguns desses textos estão em Costabel, Leibniz and Dynamics, e outros em GM VI), bem como pesquisas sobre ótica, onde Leibniz enfatiza a importância do raciocínio a partir de causas finais. Ver especialmente “Unicum Opticae, Catoptricae, et Dioptricae Principium”, publicado nos Acta Eruditorum (junho de 1682), pp. 185–190; também em Du III 145–151. Além disso, há muitos artigos técnicos cobrindo uma ampla variedade de áreas, incluindo o barômetro, química, acústica, magnetismo e relógios, bem como documentos relacionados ao escoamento das minas nas montanhas Harz. Excertos desses textos podem ser encontrados em vol. II, pt. II da edição de Dutens (1768) e em Gerland, Leibnizens Nachgelassene Schriften Physikalischen, Mechanischen und Technischen Inhalts. Até onde se sabe, a transcrição e publicação desses manuscritos na edição da Academia ainda não está em andamento.
[40] Sobre a contribuição de Newton na correspondência Leibniz-Clarke, ver Koyré e Cohen, “Newton and the Leibniz-Clarke Correspondence,” pp. 63–126.
[41] Esse conceito é repetido frequentemente nesse período e posteriormente. Ver, por exemplo: Discurso sobre a Metafísica, §10, G IV 434–445: AG 42–43. Correspondência com Arnauld (1686–1690), G II 58, 78, 98. On the Correction of Metaphysics (1694), G IV 470: L 433. On Body and Force (maio de 1702), G IV 393, 394–395, 398: AG 250, 251–252, 255. Antibarbarus Physicus (1710–1716), G VII 343–344: AG 319.
[42] Sobre o uso do termo “física” por Leibniz e a distinção entre física e dinâmica, ver On Body and Force (maio de 1702), G IV 394, 398: AG 251, 255.
[43] A tripla distinção que faço entre física mecanicista propriamente dita, dinâmica (ciência da força) e o nível metafísico da substância individual ou mônada corresponde razoavelmente àquela apresentada em Gueroult, Leibniz: Dynamique et Métaphysique, pp. 203–208. Já Gale, “The Physical Theory of Leibniz,” pp. 114–271, especialmente p. 116, propõe uma categorização diferente em três níveis: (1) o nível metafísico (mônadas); (2) o nível explicativo (substância corpórea, forças primitivas); e (3) o nível observável (corpos, forças derivadas). Por sua vez, McGuire, “‘Labyrinthus Continui’: Leibniz on Substance, Activity, and Matter,” em Machamer e Turnbull (eds.), Motion and Time, Space and Matter, pp. 290–326, especialmente p. 307, apresenta outra distinção tripartite, separando (1) o nível ideal (espaço, tempo, movimento); (2) o nível fenomênico (extensão fenomênica e mudança); e (3) o nível real (substâncias e seus atributos).
[44] Para um panorama geral da física de Descartes, ver Garber, Descartes’ Metaphysical Physics. Para um estudo da física entre os cartesianos, ver Mouy, Le Développement de la Physique Cartésienne: 1646–1711.
[45] Para uma boa discussão sobre esse argumento, ver Sleigh, Leibniz and Arnauld: A Commentary on Their Correspondence, pp. 112–114.
[46] A única exceção a essa regra é Géraud de Cordemoy, que acreditava tanto nos átomos quanto no vácuo, mas ainda assim se considerava um cartesiano. Os textos relevantes podem ser encontrados em Cordemoy, Œuvres Philosophiques, ed. Clair e Girbal. Ver também Prost, Essai sur l’atomisme et l’occasionnalisme dans l’école Cartésienne, e Battail, L’avocat Philosophe: Géraud de Cordemoy (1626–1684).
[47] Para outras ocorrências do mesmo argumento fundamental, ver: “Notes on Fardella,” março de 1690, FC, pp. 319–320: AG 103. “New System,” rascunho não publicado (ca. 1694), G IV, 473. “Resposta a Foucher” (1695), G IV, 492: AG 147. Carta a Jaquelot, 22 de março de 1703, G III, 457. “Princípios da Natureza e da Graça” (1714), §1. “Monadologia” (1714), §§1–2. Esse argumento é discutido com mais profundidade em Garber, “Leibniz and the Foundations of Physics: the Middle Years,” e em Okruhlik e Brown (eds.), The Natural Philosophy of Leibniz, pp. 27–130, especialmente seção 1.
[48] Para a explicação do argumento BD, ver seção 4.3.
[49] Para a discussão desse argumento, ver Gueroult, Leibniz: Dynamique et Métaphysique, pp. 46–49.
[50] Para outras versões do argumento, ver: Carta ao Journal des Savants, junho de 1691, G IV, 464–465. Carta a Antonio Alberti (1691?), G VII, 447–448. SD, Parte I, §§10–11, GM VI, 240–241: AG 123–125. “On the Nature of Body and the Laws of Motion” (1690?), G VII, 280–283: AG 245–250.
[51] Para a análise desse argumento, ver Garber, “Leibniz and the Foundations of Physics,” pp. 78–79.
[52] Para uma discussão sobre impacto em Descartes, ver Princípios da Filosofia, parte II, §§40–44. Para uma análise da noção de força em Descartes, ver: Garber, Descartes’ Metaphysical Physics, cap. 9. Gueroult, “The Metaphysics and Physics of Force in Descartes”. Gabbey, “Force and Inertia in the Seventeenth Century: Descartes and Newton,” em Gaukroger (ed.), Descartes: Philosophy, Mathematics and Physics, pp. 196–229 e 230–320, respectivamente.
[53] Para uma discussão sobre a noção de força na primeira metade do século XVII, ver Westfall, Force in Newton’s Physics.
[54] NT: A tradução deste trecho implicou certas distinções sutis da Escolástica Barroca, da qual Leibniz se vale para diferenciar os conceitos de força ativa e passiva. No texto original, Leibniz explica a força passiva primária enquanto: “vis primitiva patiendi seu resistendi id ipsum constituit, quod materia prima…”. À primeira vista, a razão formal deste conceito parece incorrer em erro, pois utiliza-se da matéria prima como sujeito de instanciação primeira dos corpos e, por conseguinte, fundamento da impenetrabilidade corpórea. Pois, Aristóteles definira a matéria prima como “primeiro sujeito de todo ser corpóreo” (Aristóteles, Física, I, 9). A matéria prima é “sujeito” na medida em que é portadora da forma recebida e é “primeiro sujeito” como portadora do ser substancial do corpo. Tendo em vista a formulação do Estagirita, Santo Tomás acaba por chegar, em diferentes obras, ao conceito de matéria prima como uma espécie de ser real-potencial. Ou seja, como mera potência passiva, ela não pode dar a si mesma nenhuma forma e, quanto a isso, é absolutamente potencial; ademais, por ser criada juntamente com a matéria segunda no composto, ela é real. Neste ponto, segundo Santo Tomás, a matéria prima é sempre potência. Em si mesma, ela não tem essência ou, melhor, ser potência é a sua essência, como diz o Aquinate: Materia prima est in potentia ad actum substancialem, qui est forma; et ideo ipsa potentia est ipsa essentia eius (Quaestio Disputata de Anima, q. 6, a. 12, ad. 12).
Contudo, apesar da equivalência semiótica, aqui, a matéria prima citada por Leibniz não se identifica com a formulação geral do termo, senão que faz apelo a uma distinção elaborada por João de Santo Tomás em seu Cursus Philosophicus Thomisticus, muito especialmente na parte onde se comentam os princípios da Filosofia Natural (Philosophia Naturalis, I, q. 3, a. 1). O Doutor distingue a matéria prima simpliciter (materia prima simpliciter), a qual não tem ser por si mesma e só pode ser concebida como um princípio potencial indeterminado, da matéria primeira (materia prima prima), a qual, já em posse de uma forma substancial, ainda permanece sujeita à motilidade e a transformações. Aqui, pode-se levar em conta a distinção previamente estabelecida por Santo Tomás em seu Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo (In Sent. II, d. 12, q. 1, a. 4, c.), que afirma uma diferença de primariedade segundo a natureza (matéria prima) e segundo o tempo (matéria primeira). Esta segunda identifica-se com aquilo que denominamos elementos.
[55] Uma formulação muito semelhante é encontrada em “On Body and Force, May 1702”, G IV, 395: AG 252.
[56] Sobre a força passiva em Leibniz, ver Bernstein, “Passivity and Inertia in Leibniz’s Dynamics,” pp. 97–113.
[57] Para a distinção explícita entre física e dinâmica, ver “On Body and Force, May 1702”, G IV, 395: AG 252.
[58] Descartes provavelmente foi o primeiro a publicar a lei segundo a qual um corpo em movimento permanece em movimento a menos que seja detido por uma causa externa, embora certamente não tenha sido o primeiro a sustentá-la. Ver Princípios da Filosofia, parte II, §§37–38 e Garber, Descartes’ Metaphysical Physics, cap. 7. Esse princípio, em oposição fundamental à física aristotélica, caracterizou a nova ciência do movimento e pode ser encontrado em diversos contemporâneos e pensadores posteriores, como: Hobbes, Leviatã, cap. 2 (parágrafo inicial) e Spinoza, Ética, parte II, corolário ao lema 3 que segue a proposição 13, e parte III, proposição 6.
[59] Para um desenvolvimento mais amplo desse tema, ver Garber, “Leibniz and the Foundations of Physics”.
[60] Ver Robinet, Architectonique Disjonctive, onde são feitas distinções ainda mais refinadas.
[61] Ver também o comentário de Leibniz a Bernoulli em sua carta de 18 de novembro de 1698: “Mal sei até que ponto o sílex deve ser dividido para que corpos orgânicos (e, portanto, mônadas) possam surgir; mas declaro prontamente que nossa ignorância sobre essa questão não afeta a natureza.” (GM III 552: AG 168).
[62] No entanto, essa questão não está isenta de dificuldades. Os corpos (matéria) que se unem às almas (formas) para formar substâncias corpóreas nos escritos metafísicos de Leibniz são compostos de outras substâncias corpóreas. Contudo, a matéria que Leibniz identifica com a força passiva primitiva no SD não pode ser interpretada dessa forma. Para uma discussão sobre esse problema, ver Garber, “Leibniz and the Foundations of Physics,” seção II.
[63] Para um desenvolvimento mais amplo dessa tendência no pensamento de Leibniz, ver Garber, “Leibniz and the Foundations of Physics”. Ver também Sleigh, Leibniz and Arnauld, e Wilson, Leibniz’s Metaphysics: A Historical and Comparative Study, que também discutem extensivamente a noção de substância corpórea e o status dos corpos nessa concepção.
[64] Para uma abordagem mais aprofundada dessa concepção de corpo em Leibniz, ver Adams, “Phenomenalism and Corporeal Substance in Leibniz,” em French, Uehling e Wettstein (eds.), Contemporary Perspectives on the History of Philosophy, pp. 217–257.
[65] Considero que as substâncias simples em questão são as mônadas da Monadologia. Ver também cartas a De Volder, 20 de junho de 1703, G II 251: AG 175–176.
[66] Ver também cartas a Nicolas Remond, 11 de fevereiro de 1715, G III 636: L 659, onde Leibniz faz um comentário semelhante sobre a inércia dos corpos, que ele considera uma força passiva derivada.
[67] A questão da possibilidade de uma substância composta real em um mundo de mônadas é amplamente discutida no contexto da “cadeia substancial” ou “vinculum substantiale”. Há uma grande controvérsia sobre o grau de compromisso de Leibniz com essa doutrina. O termo “vinculum substantiale” aparece pela primeira vez nas cartas de Leibniz a Des Bosses, 5 de fevereiro de 1712, G II 435: AG 198, e passa a ocorrer regularmente em sua correspondência com Des Bosses, embora não pareça ser encontrado fora dessa troca de cartas. Sobre o vinculum substantiale, ver: Boehm, Le “Vinculum Substantiale” chez Leibniz. Ses origines historiques. Fremont, L’être et la relation. Robinet, Architectonique disjonctive.
[68] No latim de Gerhardt, lê-se: “Consistit in potentia activa et passiva primitivis…”. Assim, segue a tradução de Loemker: “It consists of active and passive power originally…”. Dado que força ativa e força passiva primitivas são termos bem estabelecidos em Leibniz, parece claro que “primitivis” é um erro no manuscrito ou um erro tipográfico em Gerhardt.
[69] Isso levantaria um problema real para Leibniz. Em sua correspondência com De Volder, ele enfatiza que não podemos ter uma força derivada sem uma força primitiva correspondente.Ver, por exemplo, carta a De Volder, 20 de junho de 1703, G II 251: AG 176. Talvez as forças primitivas também devessem ter sido mencionadas na caracterização das “semissubstâncias” de Leibniz.
[70] 70. Sobre o ocasionalismo e a metafísica cartesiana do movimento, ver Lennon, “Occasionalism and the Cartesian Metaphysic of Motion,” pp. 29–40.
[71] Clerselier a De La Forge, 4 de dezembro de 1660, em Clerselier, Lettres de M. Descartes [tomo III], p. 642.
[72] Cordemoy, Œuvres philosophiques, p. 143.
[73] Malebranche, Recherche de la vérité, VI.II.III, em Malebranche, Œuvres, ed. Rodis-Lewis, vol. I, p. 643. Ver também The Search after Truth, trad. Lennon e Olscamp, e Elucidations of the Search after Truth, trad. Lennon, p. 446.
[74] Malebranche, Œuvres, vol. I, pp. 643–646 (Lennon e Olscamp, pp. 446–448).
[75] Malebranche, Œuvres, vol. I, p. 649 (Lennon e Olscamp, p. 450).
[76] Para uma discussão geral sobre a rejeição do ocasionalismo por Leibniz, ver: Brunner, Études sur la Signification Historique de la Philosophie de Leibniz, pp. 222–225. Rutherford, “Natures, Laws, and Miracles,” em Nadler (ed.), Causation in Early Modern Philosophy, pp. 135–158.
[77] Para alguns aspectos importantes dessa discussão, ver: Grant, “Place and Space in Medieval Physical Thought,” em Machamer e Turnbull (eds.), Motion and Time, Space and Matter, pp. 137–167. Grant, “The Condemnation of 1277: God’s Absolute Power, and Physical Thought in the Late Middle Ages,” pp. 211–244. Grant, Much Ado about Nothing: Theories of Space and Vacuum from the Middle Ages to the Scientific Revolution. Duhem, Medieval Cosmology, ed. e trad. Ariew.
[78] 78. Essa posição foi notavelmente defendida por Francesco Patrizi no final do século XVI, talvez o primeiro a sair completamente do quadro metafísico aristotélico e a argumentar que o espaço não é nem substância nem acidente, mas uma entidade sui generis, o recipiente de tudo, a primeira criação de Deus, na qual Ele colocou todas as demais coisas, preenchendo alguns lugares e deixando outros vazios. Ver: Grant, Much Ado, pp. 199–206. Henry, “Francesco Patrizi da Cherso’s Concept of Space and its Later Influence,” pp. 549–575. Schmitt, “Experimental Evidence for and Against a Void: the Sixteenth-Century Arguments,” pp. 352–366. Outros, como Bruno, Telesio e Campanella, pensavam o espaço como um recipiente independente dos corpos, mas nunca existente sem corpos. Ver Grant, Much Ado, pp. 183–198.
[79] Sobre a concepção cartesiana do espaço, ver Princípios da Filosofia, parte II, §§5ss. e a discussão em Garber, Descartes’ Metaphysical Physics, cap. 5. A única exceção entre os cartesianos foi Cordemoy; ver as referências citadas na nota 46.
[80] 80. Sobre a concepção de vácuo em Gassendi, ver Syntagma Philosophicum, parte II, livro II, caps. 2–5, Opera Omnia, vol. I. Grande parte desse material, conforme apareceu originalmente em suas Animadversiones in Decimum Librum Diogenis Laertii, pode ser encontrada em uma versão mais acessível em Charleton, Physiologia Epicuro-Gassendo-Charltoniana, livro I, caps. 3–5. Para discussões adicionais, ver: Grant, Much Ado, pp. 207–210. Bloch, La Philosophie de Gassendi: Nominalisme, Matérialisme et Métaphysique, pp. 194–200. Joy, Gassendi the Atomist. As concepções de Pascal sobre o vácuo podem ser encontradas em Expériences Nouvelles Touchant le Vide (outubro de 1647) e Récit de la Grande Expérience de l’équilibre des Liqueurs (outubro de 1648), além de uma importante troca de cartas com o Padre Étienne Noël. Esses textos estão disponíveis em Pascal, Œuvres Complètes, ed. Lafuma, pp. 195ss. Para discussões adicionais sobre as ideias de Pascal, ver: Fanton d’Andon, Horreur du vide: Expérience et Raison dans la Physique Pascalienne. Guenancia, Du vide à Dieu. Para uma análise da controvérsia entre Descartes e Pascal sobre o vácuo, ver Garber, Descartes’ Metaphysical Physics, cap. 5.
[81] Newton, Principia, Livro I, Escolium à Definição VIII.
[82] Newton, Principia, Livro III, Escolium Geral.
[83] 83. Para uma exposição esclarecedora sobre Newton e o espaço absoluto, ver Stein, “Newtonian Space-Time,” em Palter (ed.), The Annus Mirabilis of Sir Isaac Newton, pp. 258–284.
[84] 84. Em sua importante carta a Thomasius, de abril de 1669, Leibniz escreve: “O espaço é um ente primário e extenso, ou um corpo matemático, que contém três dimensões e é o lugar universal de todas as coisas… Assim, a matéria é um ente que está no espaço ou que coexiste com o espaço.” (A II.i 21: L 100).
[85] Ver também a explicação de Leibniz a Clarke sobre como adquirimos o conceito de espaço, na quinta carta de Leibniz, §47 (G VII 400–402: AG 337–339).
[86] Ver também Leibniz a Des Bosses, 29 de maio de 1716, G II 515: AG 201. Para discussões mais amplas sobre o espaço em Leibniz, ver: Earman, “Was Leibniz a Relationist?” em French, Uehling e Wettstein (eds.), Studies in Metaphysics, pp. 263–276. Hartz e Cover, “Space and Time in the Leibnizian Metaphysic,” pp. 493–519. Wilson, Leibniz’s Metaphysics, cap. 6.
[87] Sobre o espaço em Descartes, ver Princípios da Filosofia, parte II, §§16–19.
[88] Leibniz apresenta um argumento semelhante no SD de 1695; ver SD, Parte II, §2, (GM VI 247–248: AG 130).
[89] Para uma exposição um tanto complexa dessa visão, ver “Conversation of Philarete and Ariste” (1712–15), Robinet, Malebranche et Leibniz, pp. 444–445: AG 262.
[90] 90. O mesmo argumento aparece na introdução dos Nouveaux Essais (1704); ver A VI.vi: RB 57. Nota: o artigo First Truths, frequentemente datado do início ou meados da década de 1680, foi recentemente redatado para 1689, com base na análise de marcas d’água. Ver VE VIII 1998.
[91] Esse argumento também surge na correspondência entre Leibniz e Clarke: Segunda carta de Leibniz, §2 (G VII 356: AG 322). Terceira carta de Leibniz, §9 (G VII 365: AG 326). Quarta carta de Leibniz, Pós-escrito (G VII 377–378: AG 332).
[92] Ver Isaac Newton, Principia Mathematica, Livro I, Escolium às Definições.
[93] Ver também Stein, “Newtonian Space-Time.”
[94] Sobre versões anteriores do SD, ver a edição de Dosch, Most e Rudolph, pp. 22–24 (nota à linha 307: AG 125, n. 173), p. 58 (nota à linha 288: AG 136, n. 188), e p. 74. Sobre a relação entre Leibniz e Huygens nesse tema, ver Bernstein, “Leibniz and Huygens on the ‘Relativity’ of Motion,” pp. 85–102.
[95] Não há espaço aqui para examinar os argumentos de Leibniz em detalhes. Para uma discussão aprofundada sobre sua posição complexa e os argumentos entrelaçados que ele ofereceu, ver: Stein, “Some Philosophical Prehistory of General Relativity,” em Earman, Glymour e Stachel (eds.), Foundations of Space-Time Theories, pp. 3–49, especialmente pp. 3–61, com notas e apêndices. Bernstein, “Leibniz and Huygens.”
[96] Esse texto foi traduzido por Stein, “Some Philosophical Prehistory.”
[97] Agradeço a Richard Arthur por corrigir minha tradução aqui. Sobre as tentativas de Leibniz de usar sua doutrina da equivalência das hipóteses na questão do copernicanismo e da Igreja, ver Meli, “Leibniz on the Censorship of the Copernican System,” pp. 19–42.
[98] 98. Para uma discussão sobre Leibniz e as relações, ver capítulo 5 deste Companion.
[99] Em um esboço de 1677, Leibniz sugere que, como o movimento não é uma propriedade dos corpos individualmente considerados, ele deve ser uma propriedade do mundo como um todo; ver VE III 654. Nesse trecho, Leibniz observa: “Motum non in se formaliter, sed ratione causae considerando, posse attribui eius corpori a cujus contactu provenit mutatio.” (“O movimento não deve ser considerado formalmente em si mesmo, mas em relação à sua causa, podendo ser atribuído ao corpo cujo contato provoca a mudança.”)
[100] Em um fragmento datado entre 1678–1682, há uma sugestão de que, pelo menos no caso em que um ser humano — ele próprio uma substância corpórea — seja o recipiente da força, poderíamos determinar qual corpo está genuinamente em movimento pelo esforço sentido. Ver VE VII 1673–1674. No entanto, isso não ajuda em nada no caso geral da física.
[101] Acredito que isso seja, ao menos em boa parte, o que Russell tinha em mente quando fez seu célebre comentário sobre a relação entre a Física e a Metafísica de Leibniz: “Leibniz recebeu muito crédito pela alardeada interconexão de suas ideias nesses dois campos, e poucos parecem ter percebido o quão falsa essa pretensão realmente é. Na verdade, a falta de conexão é, creio eu, um dos pontos mais fracos de seu sistema.” (Russell, A Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz, p. 89; ver também pp. 86–87).
[102] Ver Descartes, Princípios da Filosofia, parte II, §36. Para uma análise detalhada do princípio de conservação cartesiano, ver Garber, Descartes’ Metaphysical Physics, caps. 7 e 9.
[103] Embora não haja espaço suficiente para explorar essa questão aqui, é importante observar que Leibniz deve muito a outros pensadores da época em suas leis do movimento. Para uma análise detalhada das influências sobre Leibniz e de como ele transformou o trabalho de outros, ver: Gueroult, Leibniz: Dynamique et Métaphysique, cap. 4. Westfall, “The Problem of Force: Huygens, Newton, Leibniz,” pp. 71–84. Bos, “The Influence of Huygens on the Formation of Leibniz’ Ideas,” pp. 59–68.
[104] Para análises mais detalhadas das disputas complexas, ver as referências citadas na nota 34.
[105] Leibniz delineia sua estratégia no SD, Parte I, §15 (GM VI 243–244: AG 127–128).
[106] Ver também a formulação do princípio da igualdade entre causa e efeito no corpo da Dynamica, GM VI 437.
[107] Esta é uma paráfrase do argumento na BD, GM VI 117–119: L 296–298, e no Discurso sobre a Metafísica, §17 (G IV 442–443: AG 50). Gregory Brown (“Quod ostendendum susceperamus”: What did Leibniz undertake to Show in the Brevis Demonstratio, pp. 122–137) argumenta corretamente, contra Iltis e Wilson, que o ponto principal do argumento da BD é simplesmente demonstrar que a força é distinta da quantidade de movimento, e não que mv² é necessariamente conservado na natureza. No entanto, Leibniz usa essa mesma estrutura argumentativa para outras finalidades em diferentes textos. Isso é um ponto crucial para Leibniz. Ele acreditava que a lei de conservação cartesiana se baseava em um erro sobre a medida correta da força. Leibniz pensava que, em geral, concordava-se que a força é conservada, mas argumentava que a única forma de força geralmente conhecida era a força morta, como tratada na estática. Esta força, segundo ele, é proporcional ao tamanho vezes a velocidade. Ver BD, GM VI 117: 1296 e SD, Parte I, §8 (GM VI 239: AG 122–123).
[108] Na Dynamica, Leibniz argumenta pela conservação da capacidade de trabalho a partir do princípio da igualdade entre causa e efeito; tanto no universo como um todo quanto em qualquer sistema fechado (“in quovis Systemate corporum cum aliis non communicantium”) (GM VI 440–441).
[109] Esse argumento é sugerido já no parágrafo de abertura da BD; ver GM VI 117: L 296. É importante lembrar que a quantidade de movimento cartesiana (tamanho pela rapidez) não é a mesma coisa que o momento (massa pela velocidade), conforme discutido nesta seção. O problema não é simplesmente decidir se a conservação da força viva (mv²) ou do momento é mais fundamental. Leibniz, de fato, considera a força viva mais fundamental que o momento, embora reconheça a conservação de ambos. Pois o ponto central de Leibniz é que se a lei cartesiana fosse correta, um sistema poderia perder sua capacidade de trabalho. Ver as observações sobre isso em SD, Parte I, §17 (GM VI 245–246: AG 129–130).
[110] Uma máquina desse tipo é descrita, por exemplo, no Specimen Praeliminare da Dynamica, GM VI 289–290: AG 108–109.Nesse trecho, Leibniz se preocupa não apenas em mostrar que a quantidade de movimento difere da força, mas que a quantidade de movimento não é conservada. Ele apresenta três diferentes argumentos a posteriori para essa conclusão. Ver GM VI 288: AG 107 para a formulação da proposição demonstrada, seguida das três demonstrações alternativas.
[111] Ver os comentários de Johann Bernoulli sobre esse ponto em sua carta a Leibniz, 8/18 de junho de 1695, GM III 189.
[112] No Specimen Praeliminare da Dynamica, Leibniz chega a sugerir que a equivalência entre essas noções nos permite demonstrar a lei da queda livre de Galileu. Ver GM VI 292: AG 111. O que ele provavelmente tinha como premissa é o seguinte: se a medida correta da força — capacidade de trabalho — puder ser estabelecida a priori, então, como a força em um corpo é proporcional ao quadrado da velocidade, conclui-se que a altura máxima que esse corpo pode atingir também será proporcional ao quadrado da velocidade. Disso, pela igualdade entre causa e efeito, seguiria que a velocidade adquirida na queda livre seria proporcional à raiz quadrada da distância percorrida.
[113] Para discussões mais detalhadas desse argumento, ver: Gueroult, Leibniz: Dynamique et Métaphysique, pp. 118–154. Stammel, “Der Status der Bewegungsgesetze in Leibniz’ Philosophie und die apriorische Methode der Kraftmessung,” pp. 180–188. Gueroult (pp. 153–154) argumenta que se esse argumento fosse bem-sucedido, então Leibniz acabaria sustentando que a conservação de mv² é necessária, o que contradiz sua afirmação de que as leis do movimento são contingentes. No entanto, isso não se segue logicamente. Se o argumento fosse correto, ele apenas mostraria que a medida correta da força é proporcional ao quadrado da velocidade. Mas a conservação de mv² requer uma suposição adicional: que a força é conservada no mundo. Essa suposição depende do princípio da igualdade entre causa e efeito, que, para Leibniz, é contingente; ou seja, resultado da escolha sábia de Deus.
[114] Importante aqui, evidentemente, é o trabalho de Huygens e Wren; ver as referências citadas na nota 19. Também relevante é o trabalho de Mariotte; ver seu Traité de la Percussion ou Choc des Corps, discutido em Westfall, Force in Newton, pp. 244–250.
[115] No entanto, observe que Leibniz acreditava que Malebranche, em sua explicação do impacto, cometeu alguns dos mesmos erros que Descartes. Ver: “Letter of Mr. Leibniz” (1687), G III 53–54: L 352–353. Leibniz a Bayle, 9 de janeiro de 1687, G III 46–47. Mouy, Les lois du Choc d’après Malebranche.
[116] Ver Descartes, Princípios da Filosofia, Parte II, §§40–52. A medida da “força” de um corpo está implícita nas sete regras que Descartes apresenta nos §§46–52. Para uma discussão sobre a explicação cartesiana do impacto, ver: Gabbey, “Force and Inertia”. Garber, Descartes’ Metaphysical Physics, cap. 8.
[117] Cf. Iltis, “Leibniz and the Vis Viva Controversy,” p. 29.
[118] Leibniz identifica isso como a primeira versão publicada do princípio em SD, Parte II, §4 (GM VI 249–250: AG 133).
[119] Essa é a primeira e a segunda regra de impacto de Descartes; ver Princípios da Filosofia, Parte II, §§46–47.
[120] Deve-se notar que a versão do diagrama em Loemker contém alguns erros. Ver também SD, Parte II, §4 (GM VI 249–251: AG 133–134).
[121] Para as seções da Dynamica que tratam do impacto, ver: GM VI 488–514. O ED está em GM VI 215–231.
[122] “Força absoluta” é a terminologia que Leibniz usa na principal exposição da lei de conservação no ED, em vez de “força viva”, termo que ele emprega no SD. No entanto, em pelo menos um trecho (p. 219), ele se refere à força como “la Force vive absolue”. Leibniz também fala sobre a conservação da “ação motriz”, que ele trata separadamente no ED. Ver: GM VI 220 e seguintes. Gueroult, Leibniz: Dynamique et Métaphysique, pp. 50–55. Contudo, a ação motriz parece ser aquilo que Leibniz chama simplesmente de “ação” no contexto da derivação a priori da conservação de mv². No ED, essa ação motriz é identificada com a força viva (“força total absoluta”), sendo usada na equação que expressa a lei da conservação de mv² em GM VI 227. Portanto, não será tratada separadamente aqui.
[123] Na apresentação do ED, Leibniz mede as velocidades em relação ao centro de gravidade comum dos dois corpos; ver GM VI 226. No entanto, podemos escolher qualquer referencial.
[124] O princípio é afirmado no ED, GM VI 227 e limitado a colisões elásticas em GM VI 330. O argumento completo é apresentado na Dynamica: Para a definição de força respectiva, ver GM VI 462. Para o argumento, ver GM VI 494–495, proposição 10. O argumento fornecido no texto é uma paráfrase do primeiro argumento da décima proposição. O dispositivo do cordão elástico ligando os dois corpos é introduzido na prova da proposição 7, GM VI 492–493, onde Leibniz argumenta que a força respectiva depende apenas da velocidade relativa dos corpos, e não da direção.
[125] Essa é exatamente a situação tratada na quarta regra de impacto de Descartes — Princípios da Filosofia, Parte II, §49 — onde um corpo menor em movimento é rebatido por um corpo maior em repouso, mantendo sua velocidade.
[126] O princípio é afirmado no ED, GM VI 227. A noção de progresso comum é diferenciada da quantidade de movimento cartesiana em GM VI 216–217. A questão da elasticidade é discutida em GM VI 230. O argumento para o princípio é apresentado na Dynamica, GM VI 496 e seguintes.
[127] Para um estudo dessa característica do pensamento de Leibniz, ver: M. Wilson, “Leibniz’s Dynamics and Contingency in Nature,” em Machamer e Turnbull (eds.), Motion and Time, Space and Matter. Poser, “Apriorismus der Prinzipien und Kontingenz der Naturgesetze. Das Leibniz-Paradigma der Naturwissenschaft,” pp. 164–179.
[128] Ver seção 5.1.
[129] Sobre o atomismo de Gassendi, ver: Bloch, La Philosophie de Gassendi: Nominalisme, Matérialisme et Métaphysique. Brundell, Pierre Gassendi: From Aristotelianism to a New Natural Philosophy. Joy, Gassendi the Atomist: Advocate of History in an Age of Science. Jones, Pierre Gassendi 1592–1655: An Intellectual Biography.
[130] Ver Princípios da Filosofia, Parte II, §§1–23. Descartes afirma que, em certas circunstâncias, a matéria é dividida em pedaços indefinidamente pequenos nos §§34–35.
[131] Sobre a atitude de Boyle em relação ao atomismo, ver: Boyle, Origin of Forms and Qualities according to the Corpuscular Philosophy (1666), em The Works of the Honorable Robert Boyle, ed. Birch, vol. 3, p. 137. A parte teórica pode ser encontrada em Stewart (ed.), Selected Philosophical Papers of Robert Boyle. Sobre a posição de Boyle quanto à natureza do vácuo, ver: Shapin e Schaffer, Leviathan and the Air-Pump, cap. 2.
[132] O argumento é apresentado em G VII 284–285, com algumas reflexões posteriores em G VII 285–288. Leibniz percebeu rapidamente que o argumento não era tão simples quanto inicialmente pensara e, até onde sabemos, esse argumento engenhoso não aparece em nenhum outro lugar de seus escritos.
[133] Sobre o papel da elasticidade no pensamento de Leibniz, ver: Breger, “Elastizität als Strukturprinzip der Materie bei Leibniz,” pp. 112–121.
[134] Breger (“Elastizität,” p. 120, nota 40) também fornece referência a um manuscrito de 1682–1683 intitulado “Explicatio Mechanica”.
[135] Não está claro aqui o que Leibniz quer dizer com “ilustração”.
[136] Ver, por exemplo: Aristóteles, Física II.8. São Tomás de Aquino, De Principiis Naturae IV.25. Wallace, Causality and Scientific Explanation, vol. I, pp. 73–80.
[137] Ver Princípios da Filosofia, Parte I, §28. Nota: essa seção inclui um material da versão francesa. Ver também Meditação IV, em Adam e Tannery (eds.), Œuvres de Descartes, vol. VII, p. 55.
[138] Ver Ética, Parte I, Apêndice, em Spinoza, Opera, ed. Gebhardt, vol. II, pp. 78–80.
[139] Ver, por exemplo: A objeção de Gassendi a Descartes, em Adam e Tannery, vol. VII, pp. 308–309. Robert Boyle, Disquisitions on the Final Causes of Natural Things (1688), em Boyle, Works, vol. V, pp. 392–444.
[140] Isso parece ser uma consequência da afirmação de Leibniz de que “tudo no mundo pode ser explicado de duas maneiras…”. Contudo, isso leva a dificuldades teológicas evidentes, especialmente sobre Deus como causa final do mal.
[141] Um exemplo específico ao qual Leibniz se refere várias vezes é o artigo: “Unicum Opticae, Catoptricae, et Dioptricae Principium”, Acta Eruditorum, junho de 1682, pp. 185–190. Esse texto está disponível também em Du, vol. III, pp. 145–151.
[142] Ver Watson, The Breakdown of Cartesian Metaphysics, para um relato sobre o debate no século XVII sobre a relação mente-corpo em Descartes.
[143] Na verdade, essa não era a visão de Descartes, mas sim de muitos de seus seguidores. Para uma análise completa do argumento de Leibniz, ver: Garber, “Mind, Body, and the Laws of Nature in Descartes and Leibniz,” pp. 105–133.
[144] Devemos lembrar, porém, que Leibniz impõe uma limitação implícita à explicabilidade mecânica: ele sustenta que a percepção não pode ser explicada mecanicamente. Ver Monadologia, §17 (G VI 609: AG 215).
[145] Ver, por exemplo: Henry More, The Immortality of the Soul, em A Collection of Several Philosophical Writings (Londres, 1662). Sir Kenelm Digby, Two Treatises (Paris, 1644). Para uma discussão mais aprofundada, ver Garber, “Soul and Mind,” cap. V.1, The Cambridge History of Seventeenth-Century Philosophy.
[146] Sobre a recepção de Leibniz a More e Cudworth nessas questões, ver: C. Wilson, Leibniz’s Metaphysics, pp. 160 e seguintes.
[147] Ver Tentamen e outras obras mencionadas na nota 38.
[148] Ver, por exemplo, a introdução de Roger Cotes à segunda edição dos Principia de Newton. Newton apresenta essa visão em Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, ed. Koyré e Cohen, vol. I, p. 26. Leibniz interpreta Newton dessa maneira em sua carta a Huygens, 1690 (GM VI 189: AG 309).
[149] Gostaria de agradecer a Christia Mercer e Nicholas Jolley por comentários valiosos sobre uma versão anterior deste ensaio.